The Daydreaming Tales

Sete anos sem Superman

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Esta postagem é dedicada
com amor à memória de
Christopher Reeve

Sem ele nunca teríamos acredito que um homem pudesse voar

All-Star Superman #10, pág. 13

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O seu médico realmente FICOU preso, Regan.

Nunca é tão ruim quanto parece.

Você é muito mais forte do que pensa ser.

Confie em mim.

Tradução: Felipe E. Cruz R.

Uma festa muito estranha (iv)

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Eu nem tive tempo de pensar em uma resposta, pois tive minha atenção distraída pelo Andrius e pela Júlia, que retornaram ao jardim e desabaram em cima da Andreza, a qual conversava com o Alfredo.

— Eles estão ficando? — perguntou a Marina para mim.

— São namorados.

— Ah, sim.

Foi então que o Andrius olhou para mim e para a Marina, bem, considerando que ela estava deitada no meu colo, eu entendo perfeitamente sua linha de pensamento e porque fez aquela pergunta: “Vocês estão ficando?”.

— Não, não. — eu respondi.

— Por que não? — Andrius quis saber.

— Artigo número três do Código dos Manos: “Não namore suas amigas. Não fique amigo das suas ex-namoradas”.

— Nada a ver — disse um sujeito de preto cuja presença somente foi notada por mim naquele momento. — Ele (— apontou para o Andrius —) a considerava (— indicou a Júlia —) como uma irmã e olha aí...

— Pois é, isso já aconteceu comigo, eu encontrei uma brecha no Código, acabei me apaixonado por uma amiga querida, ficamos juntos várias vezes, mas, bem, ela teve de ir embora ao final do ano passado, 16 de dezembro. Foi hipertenso.

— Tá bom, né. Você quem sabe...

Não muito depois disso, algumas coisas aconteceram: (a) a Marina se levantou e foi para algum lugar desconhecido por mim, (b) o pessoal decidiu arranjar alguém para o Alfredo, que havia acabado de sair de um namoro de três anos, ficar, e (c) mamãe me ligou, avisando estar lá na frente do Café com Arte, o que foi um tanto inusitado.

Eu me despedi do pessoal, virei o corpo na direção da saída e então me lembrei de que a Marina morava perto de casa e que havia pedido carona, mas, puxa, onde é que a menina havia se metido? A primeira coisa que eu fiz foi pedir para a Júlia ver se estava no banheiro. Não. Depois liguei x vezes para ela. Nada de atender. Fui procurá-la no quintal, só encontrei a Tuani e o Renan. Voltei para a escada que conectava o porão ao andar superior, perguntei ao Alfredo, que era amigo tanto do Raul quanto de uma menina bonitinha que também tinha estudado no Yágizi comigo, mas cujo nome eu sinceramente não me recordo no momento, perguntei a ele se tinha visto à bendita e, para variar, também não tinha visto-a nalgum lugar, sem saber o que fazer, olhei para a Júlia com um olhar idêntico ao de um menino de doze anos.

— Ela não tá com uma amiga dela aqui? Qualquer coisa, volta com ela. Agora vai logo indo antes que a tua mãe seja assaltada.


— OK, OK, ah, me liga quando vocês vierem aqui de novo, OK?


— Tá. Beijo. Tchau.


Eu saí do Café com Arte, entrei no carro, fechei a porta e o som de Kashmir mais uma vez alcançou os meus ouvidos: Marina me ligando. Mandei mamãe desligar o carro. Falei para a menina que já estava indo embora, perguntei se ela queria carona, respondeu que sim, eu desci do carro e fui esperá-la na entrada do lugar, não deixando de notar ao meu lado uma moça de cabelos pretos e com uma camiseta amarela.


“Ah, puxa, o que eu tenho a perder?”.


— É sempre assim tão lotado aqui? — perguntei.


Ela riu. — Primeira vez que você vem aqui?


— É, é.


— Tá, vou te dar os papos — ela disse. — Quando tem festa de Halloween, de Carnaval, Quero Causar, etc, etc, fica lotado, não dá nem pra respirar, mas normalmente é mais sossegado, dá pra curtir.


— Ah, sim. Entendo, entendo. Vem muito aqui?


— De vez em quando.


— Legal.


— Gostou?


— Sim, sim. Muito legal apesar de, uh, parecer um formigueiro — eu vi a Marina lutando para sair do lugar. — Ah, qual é o teu nome mesmo?


— Bruna.


— Felipe — apontei para o meu rosto com o indicador. — Então, uh, te vejo por aí.


— Tá. Tchau.


Coloquei o braço em volta da cintura da Marina, ajudei-a a descer as escadas, daí entramos no carro, mamãe deixou-a na porta da casa dela, a qual fica na mesmíssima rua em que mora um dos antigos chefes do papai, então eu finalmente cheguei aqui em casa, lavei o rosto, troquei de roupa, coloquei o pijama e, bem, cá estou eu te contando tudo que aconteceu nessa noite de 14 de agosto/madrugada de 15 de agosto.


***

— Uma noite e tanto, hein! — disse Coraline.

— E não é!


— É, é. Caramba! Olha a hora!


— Seis da madrugada! Uh, caramba!


— Papai vai me matar se me vir pendurada aqui no computador.


— Mamãe vai me encher a paciência até o fim dos tempos.


— Ah, bom dia e tchau?


— Bom dia, moça. Durma bem. Sonhe com coelhinhos felpudos e gatinhos. Beijos.


— Bom dia, mano. Durma bem também. Sonhe com... Sei lá, sonhe que você veio de Krypton, ou algo assim. Beijos. E, ah...


— Eu conheço esse “E, ah...”, oh, boy, esse “E, ah...” nunca antecede algo bom!


— Você pode dizer aquilo de novo?


— Aquilo o quê?


Aquilo...


— Criatura, eu não durmo há mais de dez horas! Meu raciocínio não está lá muito bom, dá pra ser mais específica, por favor?


— Aquilo que você me disse antes de eu ir embora.


— Ah, sim...


Felipe, em Belém — PA, disse para Coraline, em Varginha — MG.


— “Amor” é uma palavra muito fraca para definir o que eu sinto por você — eu te “armur”, sabe, eu te “avere”, eu te “ammumu”, sim, três vezes a letra “M” e eu também te “squidun” (esse é novo). Até o dia em que eu finalmente encontrar a menina branquinha de cabelos pretos e camisa vermelha do Ramones, você é a única mulher da minha vida.


— Eu também te “squidun”. Beijos. Amo-te.


Coraline ficou offline.


Ele, Felipe Eduardo, desligou o notebook, soltou um bocejo indolente, levantou-se da cadeira, andou alguns passos, abriu a porta do quarto de sua irmã, possibilitando o cachorro de sair dali, pegou o schnauzer em suas mãos, retornou ao seu quarto, deitou em sua cama, fitou o rosto peludo do animal e, como havia feito no mês anterior, fê-lo ser seu ouvinte.


— Sabe de uma coisa cachorro? Eu posso viver reclamando disso e daquilo, mas a verdade é que, apesar de tudo, eu me divirto bastante.

Uma festa muito estranha (iii)

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O Felipe e a Mirna nem deram atenção à minha presença, não posso culpá-los por isso, afinal, é muito mais divertido estar, ah, pegando aqui e ali do que conversar comigo, isso eu não posso negar, a Juliana deu uma de ninja e desapareceu dali e a Júlia, por sua vez, nem acreditou no que estava vendo. Normal, normal. Quem me imaginaria no Café com Arte? Eu mesmo que não.

— Felipe! O que você tá fazendo aqui? Tá sozinho?


— Não, não. Vim com os amigos de uma amiga. Ah, vi o Andrius lá em cima.


— Ah, tá. Eu tô aqui com ele, com a Juliana — porra, cadê a Juliana? A Juliana sumiu!


— Ela deu uma fugida quando me viu. Sem problema.


Talvez ela tenha me escutado quando eu disse isso, porque nesse exato momento decidiu reaparecer ao lado da Júlia.


— Oi, Felipe — pela entonação da sua voz, ela deveria estar com um altíssimo teor de álcool no organismo.


— Oi, Juliana, tudo bem?


— Tudo.


— Então, esse é o Café com Arte.


— Esse é o Café com Arte — disse Júlia. — O que cê tá achando?


— Não é o meu habitat, mas, ah, a gente tem de dar uma chance, né...


— É porque você tá sóbrio — falou Juliana. — Ia curtir muito se estivesse porre.


— Não duvido, mas, oh, bem, é a vida.


— O dia em que você beber tequila, vai descobrir como é bom e vai querer beber até morrer.


— Sim, porque beber até morrer seria um final bastante digno, é verdade.


Pelo canto do olho, notei que a Marina, a Tuani e o Renan vinham em minha direção. Agora que paro para pensar, pergunto-me: onde é que eles estavam antes disso? Bem, acho que não importa, ao menos não para essa história que começou há seis anos.


— Ah, eu quero jelly shot — confessou Júlia.


— Eu quero também! — disse Juliana.


Elas olharam para mim. — Vem com a gente?


— Tá, tá.


Júlia me puxou para dentro da multidão pelo braço direito ao mesmo tempo em que a Marina me puxou para fora da multidão pelo braço esquerdo, por um instante me senti tão elástico quanto o Sr. Fantástico e acabei ao lado da Marina que, logo notei, havia bebido algumas cervejas.


— Olha o que aconteceu comigo porque você não estava me vigiando! Peguei um amigo viado e bebi!


— Pegou um amigo viado?


— Peguei um amigo viado.


— Sério?


— Sério.


***

— Ela pegou um amigo viado?

— Ela pegou um amigo viado!


— Porra! E eu crente que só eu conseguia fazer isso!


— Pois é, mana, acho que você tem concorrência.


— Ah, mas quem é mais bonita: eu ou ela?


— Eu não vou me casar contigo por causa das tuas opiniões “riquíssimas” acerca da crise do Paquistão, ou pelo teu senso de humor refinado, eu vou casar contigo, moça, porque você é linda de morrer.


— É o que toda garota gostaria de ouvir. Obrigado, amorzinho. Fico feliz. Ah, outra coisa: é disso que eu estou falando! Nossas safadezas à parte, eu continuo sendo tua amiga, não era para você ter respondido, era para ter mudado de assunto, ou ignorado a pergunta e dado continuidade ao teu épico.


— Bem, isso não muda o fato que você é linda de morrer. Então, de volta à história...


— De volta a história...


***

Marina me perguntou quem eram aquelas meninas, eu contei que eram minha amiga e a ex-namorada do pequeno mano messiânico e mencionei por alto que elas tinham ido procurar por jelly shot, ao escutar esse termo, os olhinhos da Marina brilharam que nem os de uma menina de doze anos ao ganhar seu primeiro kit de maquilagem, puxou-me pelo braço e me arrastou em busco da mistura de gelatina, vodca e água.

Meu pensamento na hora foi algo como “E a aventura continua!”.


Eu ainda não sei exatamente como, todavia ao invés de encontrar o tal do jelly shot, a gente encontrou uma sala em que havia uma banda tocando, para minha alegria, música boa, isto é, Radiohead. Ah, aí eu perdi a inibição, entrei no ritmo da música (ou quase isso), requebrei o esqueleto, balancei a cabeça, baguncei o cabelo e, mentalmente, soltei um xingamento, “Filho de uma macaca assanhada!”.


O calor, a movimentação e a presença de apenas metade de um pão de queijo no meu estômago culminaram em uma hipoglicemia e, no meio de todo aquele fuzuê, o único bombom que eu tinha trazido havia desaparecido, em outras palavras, eu estava tão fudido (perdão pelo termo de baixo calão) que poderia estrelar um filme pornô.


Eu falei no ouvido da Marina que ia sair, mas já voltava, corri para a fila do bar, dei uma olhadela no refrigerador e identifiquei minha salvação: uma latinha de Guaraná Cerpa, a única, a última. Ergui minha cabeça para o céu, engoli em seco e soltei uma das minhas frases características: “Por favor, universo, não ferre comigo agora”.


L — i — p — e.


Acertei a palma da mão esquerda com força na cabeça e deixei escapar um urro de “Puta merda!”, eu reconheceria aquela vozinha esganiçada e de criança até mesmo no vácuo, onde não há propagação do som: era a Lorena, uma das minhas ex-namoradas que têm alguns motivos para, ah, querer me transformar em um eunuco.


Lorena, anteriormente agarrada a um “seu” menino gorducho, correu para perto de mim, desenhou um sorriso bêbado no rosto — eu nem sabia que ela bebia! —, disse um “Oi” em tom infantil e, bem, enfiou a língua na minha garganta, usou aquela técnica que eu aprendi no livro Nick and Norah’s Infinite Playlist e que você tanto curtia: sugou o meu lábio superior com os lábios dela e colocou a língua no frênulo, o adorável tecido de conexão situado entre a língua e as gengivas.


Então ela disse “Tchau, fofo” e foi embora, deixando-me parado ali, totalmente estupefato e rindo que nem um pateta — ah, caramba, incrível como esse tipo de coisa vive acontecendo comigo! Eu não deveria reclamar, no entanto, esperei uma bofetada digna de arrancar uma cabeça e, ao invés disso, ganhei um senhor beijo! Sorte grande!


Sorte grande que não durou muito. Quando fui atendido, o tiozinho não tinha troco, qual o resultado? Tive de comprar uma latinha de refrigerante e oito garrafinhas d’água. Sim, sim. Esse tipo de coisa só acontece comigo. “Matei” a latinha no balcão do bar mesmo, abracei as águas e estava a ponto de começar a dar cotoveladas para voltar ao cômodo da banda quando vejo a Marina descendo a escada e, provavelmente, indo para o quintal — ah, bem, o que fazer além de segui-la? Eu a encontrei na escada, ofereci uma água, ela recusou, descemos juntos para o quintal e nos reunimos com nosso grupo, digo “nosso grupo” porque o pessoal dela e o meu pessoal havia se misturado, o que, devo dizer, achei muito legal.


Marina se sentou entre o Felipe (com a Mirna em cima dele) e o Andrius e eu me sentei entre a Júlia e outra menina, a qual mais tarde eu descobriria se chamar Andreza, abri uma água para mim e outra para Júlia, ficamos conversando sobre nada de muito interessante até o fantástico momento em que uma criatura bêbada caiu em cima de mim: era a Juliana.


O Andrius, todo risonho e apontando para mim e para ela, perguntou: “Vocês já ficaram hoje?”.


— Deus, não! — respondi de imediato. — Não, não, não!


Sabe, moça, eu levo tão a sério o artigo número um do Código dos Manos, isto é, “Manos antes de minas. Simples assim” que, embora o relacionamento do pequeno mano messiânico e da Juliana já tenha terminado há tempos, no instante em que ela se sentou no meu colo, a ereção me dada pela Lorena desapareceu. Eu sei que você não precisava saber disso, mas, ah, considere isso como minha vingança por ter me dito que você e o mentecapto do André brincaram de fazer neném sem fazer neném.


Meus ouvidos captaram a voz do Robert Plant cantando I am a traveler of both time and space / To be where I have been, empurrei a Juliana para o lado, peguei o celular e atendi-o, era mamãe querendo saber se eu ainda estava vivo e sóbrio, no tempo gasto por mim tentando falar com mamãe e escutá-la, Juliana puxou a Júlia e foi dar uma volta com ela, desliguei o celular e fui conversar com o Andrius, o qual age de um jeito para lá de engraçado quando está, ah, ébrio.


— Bebendo água por quê?


— Ah, porque eu estou com sede.


— Álcool te faz mal?


— Oh, você não tem ideia do quanto... — como você é de dar pena em Biologia, vou te explicar: a concentração de álcool no sangue é inversamente proporcional a de glicemia, logo beber destilados é o mesmo que gritar “Eu quero ficar hiplogicêmico!”.


Ele acendeu um cigarro, colocou na boca, deu uma tragada e expeliu, por acidente, uma baforada de fumaça no meu rosto.


— A gente tem que passar esse ano, cara — é, o Andrius também quer Medicina. — Pr’a gente ser colega de turma, cara.


— Eu volto segunda-feira para o Physics.


— Eu tô no Universo mesmo. Creio que esse ano eu finalmente passo.


— Legal. Ponho fé em ti. Pô, a Júlia diz que você é muito inteligente.


— Pois é, né — então, eu ainda não sei receber elogios. — Pô, eu também ponho fé em ti, cara.


— Eu ponho mais fé na Júlia — riu. — Ela é nerd, hah, hah.


Andrius se levantou e foi atrás da namorada, eu me movi para ocupar o lugar dele, Marina, que até então estava conversando com um carinha, Alfredo, se deitou no meu colo e me introduziu no assunto, eu confesso não ter prestado muita atenção no que a gente estava conversando, por isso não sei dizer qual é o assunto, eu me lembro, no entanto, que o Felipe e, por sua vez, a Mirna saíram do quintal para fazer coisas que eu não quero nem pensar, colocando-nos no campo de visão da Tuani e do Renan.


— E o Zé? — perguntou Tuani para mim.


***

— Zé? O pedreiro da tua avó?

— Não. Zé de José Saramago. Uma vez a gente estava conversando, daí ela falou que o espírito do José Saramago estava do lado dela. Nada demais.


— Então, uh, ela conhece a literatura do José Saramago?


— No mínimo, ela conhece aquele livro, Objecto Quase.


— Ela tem namorado, não tem?


— Sim, sim. Renan. Cara legal.


— Certo, certo. Você está proibido, entendeu? Eu te proíbo.


— Proibido de que, criatura?


— De dar em cima dela. Ela tem namorado.


— Eu NUNCA daria em cima de uma menina que tem namorado... De novo. Ah, qual é, moça, me dê um pouco de crédito, eu não quero nunca mais viver aquele tipo de confusão!


— Ótimo pensamento, continue assim, porque se eu descobrir que você saiu um dedinho da linha e caiu em tentação, pego o meu bonequinho vodu e enfio agulhas no teu saco.


— Você será uma ótima mãe para os nossos filhos altamente disfuncionais. Posso continuar minha história? Está no final.


— Tá, continua.

Uma festa muito estranha (ii)

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Eu disse a ela para comprar o meu ingresso e que a pagaria depois, ela concordou e então me ameaçou de morte caso eu não aparecesse por lá. Desliguei o celular e acessei o MSN, falei com uma amiga da Marina, Tuani, para confirmar se o esquema, isto é, primeiro ir ao D’o Pará e depois ao Café com Arte, ela confirmou, mas disse que iam antes ao Café para comprar os ingressos com um desconto de cinco reais (o preço normal era vinte) e até me perguntou se eu queria que ela comprasse para mim, eu agradeci e disse que a Marina já ia fazer isso, então ela se despediu e foi se arrumar para sair.

Eu também fui me arrumar, coloquei uma calça jeans, o meu tênis All-Star preto (aquele que você escolheu anos atrás), um cinto idêntico ao que eu tinha roubado da minha noiva ano passado, a camiseta preta recém-comprada e uma camisa que obtive em uma loja filiada aos irmãos Cavalera, Max e Igor. Antes que você pergunte, eu só estou descrevendo a minha vestimenta para a ocasião porque sei perfeitamente que você me perguntará sobre isso depois, então...

Então fiquei sentadinho no sofá, esperando pelo Pedro, minha carona, e dando ibope para a Rede Globo, papai ficou enchendo a paciência dizendo que a minha saída tinha “miado” (incrível como ele conhece essa gíria) porque estava caindo um aguaceiro de proporções bíblicas e isso e aquilo, no final, o Pedro apareceu aqui com quarenta e sete minutos de atraso, eu dei “Tchau!” para todo mundo e entrei no carro, precisamente, no banco detrás.


Nós — eu, Pedro e Natália — conversamos sobre política e Vestibular durante o trajeto, até fiquei de marcar um dia para eu e a Natália, que quer fazer Engenharia de, de, de... OK, eu admito não lembrar qual tipo de Engenharia ela quer, enfim, nós ficamos de marcar para estudarmos juntos e ajudar cada um com suas fraquezas.


Pedrinho estacionou o carro naquele posto no finalzinho da Senador Lemos, eu entreguei o presente para ele, que me agradeceu, mas não abriu — uma pena, eu gostaria de ter visto a reação dele —, então descemos do carro e fomos para o caixa eletrônico onde aconteceu o primeiro revés da noite: a máquina insistia em não reconhecer nem o cartão nem a senha do Pedrinho, em outras palavras, nada de pegar dinheiro.


Bem, era aniversário dele e eu tinha dinheiro suficiente para gastar conosco, disse que ia cobrir nossos gastos naquela noite, Pedro e Natália aceitaram, embora com um tanto de relutância, a minha proposta, daí finalmente seguimos para o D’o Pará, pegamos uma mesa embaixo de uma das caixas de som, eu comprei duas fichas de bilhar e, ao me virar, dei de cara com a Marina, eu a abracei e troquei beijinhos na bochecha, falei que ia me juntar ao grupo dela dali a alguns instantes.


— Tá, eu tô te esperando — ela acenou para o casal e retornou para sua mesa.


***

Coraline, uma vez mais, interrompeu a narração de seu amigo. — Um minuto, por favor!

— O que é, amor da minha vida?


— Essa será mais uma daquelas histórias em que você quebra o artigo número três do Código dos
Manos?


— Não, não. Única menina no mundo capaz de me fazer quebrar essa parte do Código é você.


— Ótimo. Eu gosto dessa exclusividade.


— E eu gosto de brincar com você durante essa exclusividade...


— Felipe, por favor... São quatro da madrugada. Não é hora para flertar.


— Está falando sério?


— Não, só estou falando isso pelo bem das aparências.


— O que funcionar para você, mana... Pois é, como eu estava dizendo...


***

Eu coloquei uma ficha, entreguei um taco para a Natália e fomos jogar bilhar, é claro e óbvio que minha ruindade continua inalterável desde quando você, amor da minha vida, me trocou por Varginha, por isso ela passou a maior parte da partida me dando uma surra, ocasionalmente, porém, a Dama da Sorte sorria para mim e me fazia pôr algumas bolas na caçapa.

De tão agoniado com a lentidão da nossa partida, o Pedro resolveu se meter no jogo, dando assistência ora para mim, ora para Natália, no final, o jogo terminou comigo indo ao banheiro e o Pedro tomando meu lugar, venceu ao colocar a bola número treze na caçapa, eu o agradeci do fundo do coração por ter me concedido a vitória e avisei que ia falar com o pessoal da Marina, o qual estava naquele momento na calçada em frente ao bar, fumando seus cigarros.


Inseri-me no grupo na maior cara de pau, fui apresentado ao pessoal, já conhecia a Tuani, reconheci vagamente dois indivíduos, Felipe e Luís, me lembrei da Mirna, que era namorada do xará, como sendo “a menina com quem meu primo teria ficado caso não estivesse de rolo com outra cidadã” há alguns anos e descobri que o namorado da Tuani, Renan, fazia parte de uma banda cujo nome não me era tão estranho, certamente alguém havia me falado do grupo em algum momento do passado.


Pedro me avisou que ele e a Natália iam buscar o Jorginho (também chamado de “gigantesco mano satânico”) em sua residência, ao mesmo tempo uma porção do pessoal da Marina se afastou para um lugar desconhecido por mim para, ah, como eu posso dizer isso? Ah, sim! “Dar um ‘alô’ para a namorada do Peter Parker”. E não, eu não estou me referindo à Gwen Stacy, mas aquela que vive chamando-o de “tigrão”.


Assim ficamos conversando eu, a Marina, o Luís e a Mirna acerca da menina com quem um dos amigos deles estava ficando naquele momento. Sabe, vocês, mulheres, são muito cruéis: elas destroçaram a menina que, eu devo admitir, não era lá uma Zooey Deschanel da vida, ou mesmo uma Ellen Page, mas, enfim, o cara tinha escolhido-a e, bem, elas deveriam ficar felizes por ele ter alguém, puxa! Daí duas coisas aconteceram: o Luís, um cara muito simpático, apontou que nós, homens, não prestamos atenção em roupa de mulher e a Marina me perguntou quem eu achava mais bonita: ela, ou a ficante do amigo dela.


***

Como você, caro leitor, deve ter notado, Coraline fez outro comentário. Ou melhor, outros dois comentários. — Duas coisas: (1) isso é mentira, ao menos no teu caso: você vivia reparando e opinando na minha roupa...

— Ah, mas as coisas são diferentes contigo, ora...

— (2) Pelo amor do frênulo da minha língua, diz que você usou uma manobra evasiva para escapar da pergunta e não disse que a tua amiga era mais bonita!


— Não me faça perguntas e eu não te direi mentiras.


— Felipe, você é uma esponja. Preciso te lembrar da Raffaela?


— Tua prima Raffaela, ou minha prima Raffaela?


— Minha prima Raffaela.


— O que tem ela? — as sinapses do narrador produziram um flashback. — Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não. É uma situação completamente diferente, a tua prima não era minha amiga. Nunca foi. Tanto é que logo de cara eu olhei para ela e falei “Sabe, você é linda de morrer, ainda vou namorar contigo”. Então, por favor, amor da minha vida, tire esse pensamento da tua cabeça, não foi nada além de uma pergunta e uma resposta/opinião, OK?


— OK, a vida é tua, viva-a como quiser.


— Amém.


***

O pessoal voltou das partes desconhecidas e se juntou ao nosso quarteto, daí o grupo foi para a mesa, atrapalhando a felicidade do “seu” menino lá e da sua ficante, sentei entre a Marina e a Tuani e de frente para o Luís e nesse momento eu finalmente descobri de onde eu o conhecia: era o Luís, amigo do Laércio! O rapaz que havia ido ver 2012 comigo, com o Laércio e com o João, meu primo. Nós apertamos as mãos, nos reapresentamos e ficamos a conversar. Ele falou ter lido e gostado dos meus contos e comentou admirar profundamente o Laércio, o qual também é um cara legal. Por sinal, a maneira como ele descreveu a admiração que sentia para com o nosso amigo marinheiro fez-me lembrar de mim quando estou falando do grande mano esbranquiçado.

Alguém notou a solitária pulseira que a Amanda, irmãzinha de dezessete anos do Leandro, havia me dado como lembrança das nossas safadezas, a Tuani tentou me fazer inveja (de brincadeira) ao mostrar as cinquenta mil pulseiras do mesmo tipo que tinha no braço, em outra situação, eu até teria pedido para ela me dar uma, mas não, deixarei a pulseira da Amanda ser a única no meu braço para me lembrar de todas as vezes que nós arriscamos nossos pescoços e nos encontramos para brincar. Ela é uma boa menina. Eu, honestamente, espero que encontre um cara legal e digno dela.


Não muito depois disso, o Pedro e a Natália retornaram ao bar com o Jorginho, pedi licença ao povo da Marina e fui falar com eles, fiquei muito feliz ao reencontrar o gigantesco mano satânico após mais ou menos dois meses sem ter notícias dele, sentei-me à mesa dos meus amigos, pedi um refrigerante dietético e fiquei na companhia deles até dar a hora de ir para o Café com Arte.


O amigo aniversariante da Marina, um autêntico MacGuffin, optou ficar no bar enquanto que eu, Marina, Luís, Mirna, Felipe, Tuani e Renan — Renan, guitarrista da banda Alice no País das Mangas-Vivas! Descobri, afinal, onde havia visto tal nome! Isso mesmo: foi no Orkut! Meu primo, Erick, promoveu uma propaganda da banda! Uau! Belém realmente é um ovinho de codorna. Enfim! Continuando... Nosso hepteto rumou para o Café com Arte, eu, a Marina e o Luís pegamos carona com um amigo deles, creio que seu nome fosse Fábio, durante o caminho, contei com um ar nostálgico sobre aquele episódio glorioso — para não dizer o contrário — ocorrido na frente do Café com Arte há um ano, obviamente estou me referindo ao momento em que o namorado (na época) da Srta. Insegurança quase me espancou porque eu simplesmente falei com ela.


Bons tempos? Não mesmo.


Luís, Mirna e Felipe compraram seus ingressos — quem diria! O preço ainda era quinze reais! — e nós entramos no bendito Café com Arte. Qual minha impressão inicial do lugar? Formigueiro. Yep. Um formigueiro. De tanta gente que tinha lá dentro, nem quis imaginar como seria caso houvesse um incêndio...


Enfrentamos um empurra-empurra para alcançar o porão, ficamos lá por um tempo, escutando a música, balançando o corpo para lá e para cá, então demos uma volta pelo quintal apenas para descobrir que o troço giratório, principal motivo de eu ter ido aquele lugar de más lembranças, não estava lá e, por fim, retornamos ao andar de cima, abrindo um caminho entre as pessoas e achando um cantinho para ficar e dançar (não se preocupe, eu não encarnei nem o Vincent Vega nem o Tom Hansen).


Repentinamente, as palavras do Renato Russo ecoaram na minha cabeça — Festa estranha com gente esquisita / Eu não tô legal — e finalmente ter Eduardo como meu nome do meio fez sentido. Amor da minha vida, você não acreditaria na quantidade de gays e lésbicas por metro quadrado naquele lugar. Sério. Por um instante eu pensei ter ido a uma festa GLS — eu não sou preconceituoso, mas, caramba, é hipertenso ver dois guris se agarrando na minha frente.


A Marina e a Tuani piraram o cabeção com as músicas ao passo que eu, Renan e Luís (sim, nós o encontramos) ficamos apenas indo para lá, indo para cá, mexendo os braços de vez em quando e, no caso do Renan, aproveitando o fato de ter uma namorada bonita.


Como eu estava com duas camisas, por muito pouco não derreti dentro daquele formigueiro, comentei do calor com a Marina e nós fomos ao bar tentar pegar algo para beber, no caminho encontrei com três conhecidos: o Raul, o Renato e o Júnior, esse daí não conta muito porque, bem, eu não vou com a cara dele e fingi não tê-lo visto.


A gente ficou lá na fila do bar por algum tempinho antes de desistir e voltar para a boate. Fila muito grande e, aparentemente, imóvel. Não tinha como aguentar. Na hora em que estávamos conseguindo voltar para o nosso cantinho, encontramos os amigos da Marina saindo de lá, nós giramos nos calcanhares e seguimos a trilha deles quando, do nada, eu escuto um grito.


— Felipe!


Eu parei, olhei para a esquerda e encontrei a fonte do grito: era o Andrius. Eu já te falei dele, é o atual namorado da Júlia, ex-namorada do grande mano esbranquiçado. Pois então, apertamos as mãos, ele me disse que a Júlia tinha descido para fumar e falou para eu ir lá com ela, como eu tinha me separado do grupo da Marina, concluí que o melhor a fazer era exatamente ir atrás da minha tribo, muito bem, enfrentei bravamente aquele fluxo de pessoas que desciam e subiam as escadas, abri um caminho em direção ao quintal, olhei ao redor e nada de encontrar a Júlia, o que fiz então? Peguei o celular e liguei para ela.


Em uma grande ironia do destino, no momento em que coloquei o celular perto do meu ouvido, virei à cabeça para esquerda, desse modo, colocando a Júlia, a Juliana, ex-namorada do pequeno mano messiânico, o Felipe e a Mirna no meu campo de visão. Tornei a ser atingido por um relâmpago divino e me lembrei de onde conhecia o xará: era o Felipe, amigo da Srta. Insegurança, por volta de março ou abril do ano passado, assisti a um show da Juliana, ah, Sinimbal? Sinimbribu? Simbaué?


***

— Sinimbú. Juliana Sinimbú.

— Isso, isso! Muy obrigado, amor da minha vida! Fico te devendo um almoço!


— De tanto almoço que você me deve, posso até montar um restaurante.


— Enfim, como eu estava dizendo...

Uma festa muito estranha (i)

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Ele retornou ao lar por volta das três e meia da madrugada. Cansado, suado, fedendo a cigarro e a bebida e com a calça jeans suja de grama. Trocou aquela roupa impregnada com o odor da noite por um pijama mais confortável, matou a sede com alguns copos d’água, então se sentou defronte para o notebook, ligou-o, acessou o Windows Live Messenger, aquele programa da Microsoft antigamente chamado de MSN, e no instante em que seu status foi mudado de offline para online, foi abordado por uma amiga, Coraline.

— Isso lá é hora de estar acordado, menino?! — brincou.


— Bom, ah, dia? É. Bom dia para você também, mana.


— Bom dia — retribuiu. — E aí, como foi lá na festa?


— Oh, bem... Por onde começar?


— Que tal pelo começo?


— É... O começo sempre é um ótimo lugar para começar — disse. — Pois bem, tudo começou há...


***

Tudo começou há seis anos quando eu ainda fazia curso de Inglês junto com meu primo, Yanzinho, no Yágizi lá no bairro do Marco, naquela época eu conheci uma menina com quem nunca falei muito, a Marina. Cinco anos mais tarde, no cursinho, eu e outro primo, João, conhecemos um cara legal, Laércio, que era amigo daquela menina, estudaram no mesmo lugar, a Escola Tenente Rêgo Barros.

Ao passar de um ano, a Marina entrou no Orkut e levou um susto quando fuçou o perfil do Laércio: deu de cara com a minha foto no quadro de “Amigos” e soltou um grito, algo como “Eu estudei com esse menino!”, daí ela me mandou um recado, eu mandei outro, começamos a conversar, trocamos MSN, construímos uma amizade com seis anos de atraso e, eventualmente, ela me convidou para o aniversário de um amigo dela, eu não sei exatamente o nome do “seu” menino em questão, mas creio que seja João. Ou não.

Sábado. 14 de agosto. Um dia adorável. Estudei Filosofia e Sociologia. Morri de rir ao assistir pela enésima vez Ace Ventura: Um Maluco na África, procurei no YouTube as lutas do icônico Rocky Balboa e daí me levantei para ir tomar um banho, eis que minha sorte começou a mudar: ao ficar de pé, empurrei a cadeira para trás, fazendo-a colidir com o banquinho no qual jazia o ventilador — o ventilador caiu e, assim como o anel de vidro da Cirandinha, se quebrou. Em mil pedaços.


Tudo bem, não em mil pedaços, mas em vários pedaços. Eu esquadrinhei a casa em busca das benditas peças, eu as encontrei, daí montei de novo o eletrodoméstico e então percebi estar faltando uma parte essencial: aquele botãozinho que determina se a cabeça do ventilar fica parada, ou girando em π radianos (uma maneira mais chique de dizer “180°”).

Eu sou calorento. Muito calorento, na verdade. Portanto, um ventilador que fica girando para lá e para cá é um tanto inútil para mim, então o que fiz? Fiquei de quatro...


***

Coraline riu.

— Caramba, mana, mas que mente poluída, hein!


— Ah, tá. Como se você pudesse falar isso...


— Minha mente nem é poluída. Eu sou uma pessoa de mente pura.


— Pura sacanagem.


— Detalhes, detalhes! Posso continuar a “vender o meu peixe”?


— Pode, pode.


— OK, muito bem, eu fiquei de quatro...


***

Fiquei de quatro no chão, procurei pelo bendito pino no meu quarto e na sala de estar, olhei para o céu de um jeito suplicante e implorei ao Grandíssimo — Son Goku, não o Leonid Stadnik — para que o cachorro, um schnauzer de pelo preto, não tivesse achado o pino antes de mim e, por sua vez, o mastigado até transformá-lo em pó.

Bem, se o cachorro encontrou, ou não, o pino, eu ainda não sei, pois tive de dar uma pausa na minha jornada quando escutei o primeiro trecho da música Kashmir (do Led Zeppelin) — Oh, let the sun beat down upon my face — indicando que alguém estava a me ligar, no caso, este alguém era o Pedro, um dentre os meus sete melhores amigos e que completaria seu vigésimo primeiro aniversário no outro dia, 15 de agosto, feriado de Adesão do Pará à Independência.


— Eduardo, camarada, tudo bem?


— Tudo, mano. E com o senhor?


— Tudo bem também. Ei, está em casa?


— Sim, sim.


— E o que está fazendo?


— Eu estava indo tomar o meu banho.


— Ah, tá... É que eu estou aqui na frente da tua casa.


***

Coraline soltou uma indagação. — Ué, mas você não estava procurando o pino?

— Tecnicamente, eu estava indo tomar o meu banho, o incidente do pino foi só um pequenino desvio.


— Tá, né, se você diz... Continue, continue.


***

Eu larguei o celular e fui receber o Pedro, notei que ele havia trocado de carro outra vez, agora era um de cor prateada, ele desceu do carro e veio andando em minha direção, fez sinal para a pessoa no banco do passageiro, essa pessoa era sua namorada, Natália, a qual eu somente havia visto uma vez na vida até então — quatro anos atrás quando fui dar uma ajudazinha ao Pedro em Química.

Eles atravessaram o portão, eu falei que era melhor nos cumprimentarmos apenas com um aperto de mão, afinal, eu estava com aquele pijama desde a noite anterior e, bem, você sabe o que acontece nessa situação... O casalzinho, no entanto, dispensou meus avisos e me cumprimentaram com um abraço fraterno (Pedro) e beijinhos no rosto (Natália).


Convidei-os para entrar e se sentar, contudo o meu amigo barbudo dispensou o convite, dizendo que era uma visita de médico, tinha passado apenas para me convidar para sair naquela noite e comemorar o seu aniversário, disse ter convidado também outros de nossos amigos, e avisou que a Natália ia junto.


Eis que houve um estalo na minha mente e eu aproveitei o momento para unir o útil ao agradável: um dos lugares preferidos do Pedro em Belém é o D’o Pará Bar lá no bairro do Umarizal e, coincidentemente, era lá em que começaria o aniversário do amigo da Marina (referir-me-ei a ele dessa maneira a partir de agora), então sugeri ao meu amigo do Partido Popular Socialista (PPS) para irmos ao D’o Pará por volta das nove da noite, ele aceitou a sugestão de imediato, despediu-se com outro abraço e foi embora com a namorada para sei lá onde.


Abandonei por completo qualquer esperança de encontrar o pino, rumei para o banheiro, tomei um banho merecido e demorado de quarenta e cinco minutos, vesti-me com uma camisa desbotada do Sepultura e uma bermuda preta tão desbotada quanto e daí segui para a Y. Yamada perto daqui de casa para (a) comprar o presente do Pedro, (b) comprar um desodorante, (c) comprar uma camiseta preta e (d) comprar um ventilador novo para a vovó.

Eu e o Pedro temos duas grandes semelhanças: conhecimento político e um alto teor de safadeza, como eu não encontrei O Manifesto do Partido Comunista, optei seguir na outra direção e comprei um exemplar do Kama Sutra, um presente que seria agradecido tanto por ele quanto pela Natália. Comprei o desodorante na farmácia, a camiseta preta na ala de roupas e o ventilador na parte de eletrodomésticos. Fui a pé para casa com todas as sacolas em mão, uma vez ou outra quase tropecei nos meus próprios pés e por um centímetro não esbarrei na filhinha de uma das vizinhas.


De volta ao meu lar, recebi uma ligação da Marina no celular, perguntando se eu queria que ela comprasse o meu ingresso para o Café com Arte...


***

Ainda que ele e Coraline estivessem separados por uma distância de quilômetros, ele sabia perfeitamente que a amiga, ao ler o nome Café com Arte, produziu uma expressão de espanto no rosto.

— Café com Arte? Aquele Café com Arte? — perguntou. — Café com Arte da Rui Barbosa? O mesmo lugar em que você quase...


— Yep. Esse Café com Arte mesmo.


— Mas a festa não ia ser no D’o Pará?


— Não, a festa ia começar no D’o Pará, o resto seria no Café com Arte.


— Mas você odeia aquele lugar!


— Sim, eu odeio.


— Então por que concordou em ir para lá, criatura?


— Porque ia ter um troço giratório, sabe. Um troço em formato de círculo em que você prende seus braços e pernas e começa a girar numa velocidade alucinante... Eu não podia perder isso!


Coraline começou a rir. — Você tem o que, doze anos?


— Ah, mana, eu já te contei isso: todo e qualquer homem não evolui quanto à mente a partir dos doze anos.


— Todos os homens são punheteiros que curtem Dragon Ball Z e Raimundos?


— Basicamente. É. É.


— Acho que vou virar lésbica, parece ser o único jeito de ter um relacionamento maduro.


— Você ia detestar. Afinal, 90% da tua diversão é derivada da minha falta de bom senso, imaturidade e ideias estrambóticas.


Ela ficou em silêncio por alguns segundos. — OK, isso é verdade. Enfim, continue com a tua saga.


— Certo.

Ele & Ela

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Ela é dramática.
Ela é escandalosa.
Ela quer tudo do seu jeito.
Ela quer o mundo girando ao seu redor.
Ela não tem uma gotícula sequer de tolerância.
Ela não tem a coragem para admitir estar errada.
Ela é tudo aquilo que ele sempre repudiou em uma mulher.
E, no entanto, o único sentimento dele para com
ela é o de encanto.
Nada como o amor verdadeiro para desaparecer com os defeitos da outra pessoa.


Originalmente publicado em Reminiscência.

Textozinho sem título

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É sexta-feira à noite e eu estou sozinho em casa, tenho sono e vou dormir, mas antes preciso fechar a janela da sala, vou até lá e fito a rua silenciosa e escura à minha frente. De repente, uma menina pedalando uma bicicleta surge da escuridão — estará voltando ou indo a algum lugar? Eu não sei e tampouco tenho como saber —, há um buraco no asfalto e ela não o vê por conta da escuridão, a bicicleta, ao passar por cima dele, treme, a menina perde o equilíbrio, caí, rala o joelho, chora por um tempinho, depois engole o choro, sobe na bicicleta e volta a pedalar. É assim que é a vida para mim.

Herança (iii)

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Embora o sangue divino corresse por suas veias, Noah nunca se considerou um deus, na verdade, via-se como um humano de carne e osso, por isso fez de Lucca sua morada e com os homens viveu, sendo abençoado com o dom da imortalidade, poderia ter residido na Terra até o último suspiro de vida da última criatura mortal, contudo decidiu estar na hora de abandonar o Mundo dos Mortais e rumar ao encontro de sua mãe.

E foi assim que Noah Nash morreu.


Nathaniel tinha pleno conhecimento de sua ancestralidade, porém, como o falecido tio, não atribuía grande importância a ela, afinal, sendo descendente direto de Nigel Nash, o rapaz nunca apresentaria um domínio da magia sequer similar ao de Noah e também carecia de qualquer talento para aquela arte sobrenatural diferentemente de Nicole que apesar da falta de qualquer parentesco com a Deusa da Magia, havia se transformado numa feiticeira de enorme aptidão, tinha domínio dos Seis Elementos, sabia como erguer azekahis, podia sentir a magia de outro praticante e possuía enorme conhecimento oriundo dos anos e anos em que foi treinada pelo pai adotivo.


Por essas razões, o último Nash legítimo nunca ponderou a possibilidade de Nicole não ser apontada como herdeira absoluta da Lucca e suas responsabilidades, justamente por isso decidiu ir embora de Applefield para estudar, se não poderia ser um feiticeiro como seu pai postiço, Nathaniel queria ao menos se tornar a autoridade maior na profissão que escolhesse, mas o destino havia dado uma guinada e agora ali estava ele, sentado no chão do escritório de seu tio, rodeado por livros de magia e mitologia, buscando por uma maneira de abrir a Caixa da Pandora — se seu tio Noah apontara-o como herdeiro, então certamente deveria acreditar na capacidade de Nathaniel em honrá-lo no domínio da magia e ele fá-lo-ia de um jeito ou de outro.


A solução para o problema que assombrava seus pensamentos surgiu para Nathaniel em um sonho, muito cansado, o rapaz se acomodou no chão do escritório para cochilar, pois seria incapaz de descobrir como abrir aquele objeto se estivesse exausto demais até para pensar, fechou os olhos e se largou nas correntezas do Mundo dos Sonhos moldado pela tribo dos Oneiroi, como se por uma dádiva de Morfeu, Nathaniel se descobriu revivendo o seu encontro com a cliente algumas horas atrás, durante o sonho, repetiu o cognome dado por ela: Pandora Heinstein. Caixa de Pandora. Pandora. Quem havia forjado a existência de Pandora, a primeira mulher do mundo?


Nathaniel despertou com um nome em seus lábios: Hefaísto.


Apesar de sua total inaptidão para com a magia, Nathaniel aprendera como realizar alguns feitiços menores, em sua maioria, feitiços de evocação, isto é, que traziam criaturas místicas para perto dele e punham-nas sobre seu comando, por carecer do pendor natural de sua prima, Nathaniel sempre se sentia particularmente exausto após realizar esse tipo de ação, contudo estava disposto a ignorar o cansaço caso isso significasse provar a Nicole que ele também era digno de ser chamado de herdeiro.

Auxiliado por um livro, Nathaniel desenhou um círculo de magia no chão de um dos cômodos desocupados da área oriental de Lucca, enfeitou-o com os símbolos apropriados, acendeu seis velas ao seu redor, despejou a quantidade indicada de gamânio em pó sobre o desenho, decorou as palavras de evocação, limpou a garganta e respirou fundo antes de chamar ao seu encontro a criatura que o levaria ao lar de Hefaísto, o Deus da Forja.

Nathaniel proferiu as palavras de encanto, fazendo com que houvesse uma reação imediata com o círculo de magia, suas linhas de giz branco ganharam cores metálicas cuja luz projetou uma réplica do símbolo no teto do cômodo, este, por sua vez, desapareceu como se nunca tivesse existido, tornando possível para Nathaniel contemplar o céu noturno...


... E o gigantesco pássaro de coloração azul-metálica que pairava, obedientemente, sobre a sua cabeça, de acordo com o livro, tal criatura atendia pelo nome de Alicanto e tinha de ser alimentada com moedas de ouro e prata para que se mantivesse saudável. Sendo de natureza gentil, Nathaniel tratou de alimentar o pássaro místico com uma moeda de cada tipo, acariciou seu bico afiado, o qual possuía o tamanho do braço do rapaz, e então adentrou no círculo de magia, que o transportou para cima do pescoço de Alicanto, onde permaneceria até alcançar a Morada de Hefaísto.


Tão logo Nathaniel sussurrou o nome de seu destino, Alicanto bateu suas enormes asas e ascendeu, cortando o céu daquela noite sem estrelas, sua velocidade era superior a de qualquer carro existente, todavia não provocava desconforto algum em seu temporário mestre, isto ocorria devido ao círculo de magia que possuía também a função de resguardá-lo de qualquer perigo gerado pela natureza do Alicanto.


Depois de tanto tempo vivendo na Ilha de Lemnos, o Deus da Forja optou se distanciar dos mortais, transportou sua oficina e suas ferramentas para o topo de uma montanha acima das nuvens de onde poderia contemplar, ainda que com alguma dificuldade, as luzes do Olimpo, monte divino de onde fora expulso por sua mãe, Hera, por ter nascido imperfeito: carecia de uma perna.


Seu novo lar detinha de uma atmosfera estupidamente quente, dotada de rochas vermelhas e com pilastras tombadas de metais preciosos aqui, ali e acolá, sua entrada era um enorme portão de aço e ouro em que se podia ler, em grego, palavras irônicas de saudação, afinal, não haveria conforto algum em percorrer o caminho tortuoso e queimante que dava para sua Morada.


Sendo uma criatura associada ao metal, o Alicanto estava isento de qualquer moléstia naquele local, Nathaniel, por outro lado, sentia como se estivesse derretendo, tinha sua roupa ensopada de suor, os pensamentos derretiam, a necessidade de molhar a garganta crescia e a vontade de retornar para o conforto de seu lar parecia cada vez mais tentadora.


— Não! — ele falou. — Eu não posso voltar atrás!


E assim iniciou sua caminhada pela abrasante estrada de Hefaísto.


Suas pernas iam perdendo a força rapidamente, sua mão direita ardia ao sofrer com o calor absorvido pelo metal da Caixa de Pandora, as gotas de suor caiam sobre seus olhos, as juntas de seus membros doíam intensamente, a pele debaixo da roupa era lesada pelo calor e em pouco tempo suas últimas forças evaporaram — Nathaniel estava fadado a desabar sobre o metálico chão queimante. Hekate derramaria lágrimas por ele?


Mejarkon.


Uma bolha de água cobriu o corpo de Nathaniel, escudando-o de todos os perigos daquele terrível lugar.


— Seu idiota! — berrou uma voz conhecida.


Nicole surgira ao lado do primo, assim como ele, tinha uma bolha de água ao seu redor, consequência do feitiço Mejarkon.


— Obrigado — agradeceu Nathaniel, sincero.


Ela se aproximou dele, de modo que as duas bolhas d’água se tornassem uma só, englobando os herdeiros de Nash e possibilitando Nicole de acertar outra bofetada no rosto de Nathaniel, o qual estava debilitado demais até para sentir dor.


— O que você pensa que está fazendo?! — berrou Nicole. — Você não tem como se defender! Vir até aqui sozinho foi uma estupidez atroz!


— Desculpe, desculpe.


Outra bofetada lhe acertou o rosto. — Você tem muita sorte por eu ter sentido a magia de evocação! — falou. — Agora, dê-me a caixa!


Ciente de seu erro, Nathaniel fez como ordenado, uma vez com a caixa em mãos, sua prima se distanciou dele, separando as bolhas em consequência. — Idiota! — a prima tornou a dizer. — Fique perto de mim e faça apenas o que eu mandar, entendeu? — Nathaniel balançou a cabeça positivamente. — Ótimo — ela continuou a caminhada com o primo em seu encalço.


Uma vez escudados das maleficências do calor, Nicole e Nathaniel não encontraram dificuldade alguma em alcançar o fim do caminho: um templo de proporções gigantescas constituído, fundamentalmente, de rocha, ouro e aço — os materiais preferidos de Hefaísto. Estando diante da morada de uma divindade, os primos tiveram de agir com certa polidez, fizeram uma longa reverência, anunciaram seus nomes e então ficaram a esperar pela permissão para entrar no Templo de Hefaísto.


ENTREM — falou uma voz altissonante.


Nicole e Nathaniel entraram no templo, seguiram em linha reta pelo único corredor existente, desembocando em um salão de amplitude incomensurável ocupado por um único elemento: um colossal trono de metal no qual se sentava o Deus da Forja, um gigante de pele acinzentada, cabelos longos e esbranquiçados, desprovido de uma perna e de olhos fechados, entretanto plenamente acordado.


FALEM.


Nathaniel olhou para Nicole, depois de sua falta, não tinha a menor dúvida de que ela quem deveria falar com aquela criatura divina.


— Grande Hefaísto, Deus da Forja! Cá estamos para Lhe pedir um humilde obséquio! Pedimos para que Vossa Deidade nos construa uma chave adequada para abrir esta caixa! — ela ergueu a caixa acima de sua cabeça. — Obviamente, estamos dispostos a pagar-Lhe por este simplório serviço — complementou.


ESTÃO? E O QUE VOCÊS, MORTAIS, PODERIAM TER PARA MIM, UM DEUS?


“É verdade”, pensou Nathaniel, “Não há nada que possamos dar a Ele”.


Seu pensamento, contudo, era novamente errôneo.


Nicole colocou a mão dentro de suas vestes e retirou de dentro de um bolso interno um pequenino frasco em cujo interior havia pouquíssimos mililitros de um líquido brilhante de aparência similar a da água.


— Isto: Gotas de Lágrimas de Oceânide — respondeu. — Há quem diga que nem o Grande Esculápio consiga produzir tão bom remédio para os olhos!


O esticou seu indicador direito em direção ao corpo minúsculo de Nicole.


DÊ-ME A CAIXA.


Ela colocou o objeto na ponta do dedo gigante de Hefaísto, sentindo um ligeiro momento de dor, pois a atmosfera dentro do templo era infinitamente mais agressiva ao corpo humano do que o caminho até ali.


O Deus da Forja colocou a Caixa de Pandora na altura de seus olhos, apertou-os para enxergar melhor o formato da fechadura, arrancou uma lasquinha de seu troco com uma unha da mão livre, pô-la em sua boca, mastigou e mastigou, então a cuspiu sobre o objeto e o devolveu a Nicole.


DÊ-ME AS LÁGRIMAS, MORTAL.


Nicole obedeceu. Hefaísto abriu o frasco e pingou igualmente seu conteúdo nos olhos, piscou duas vezes e esboçou um sorriso deformado no rosto feio, era uma felicidade para ele, finalmente, estar livre daquela vista cansada gerada por milênios de existência.


— Nossos sinceros agradecimentos — disse Nicole.


ESCUTE-ME, MORTAL — falou o Deus da Forja. — NO INTERIOR DESTA CAIXA JAZ UM MALE QUE MORTAL ALGUM PODERÁ DOMAR, MANTENHA-A FECHADA SE TEM AMOR PELA SUA VIDA.


— Muito obrigada pelo aviso, Grande Hefaísto — agradeceu. — Eu, filha de Noah Nash, não tenho a menor intenção de abri-la.


SÁBIA DECISÃO. RETIRE-SE.


— Como desejar, Vossa Divindade — Nicole fez uma referência de despedida.


Ela e Nathaniel retornaram pelo mesmo caminho, ao se depararem com o Alicanto, o rapaz percebeu que nenhuma criatura havia trazido sua prima até aquele lugar, então como ela poderia estar ali? Sua resposta surgiu na forma de uma palavra dita por Nicole: Volaticus, ao pronunciá-la, a filha de Nash ganhou um par de asas de plumas brancas que brotaram de suas costas — sim, o talento de Nicole para com a magia era imenso, nem em seus sonhos mais loucos Nathaniel pensaria na possibilidade de transfigurar o próprio corpo.


O rapaz subiu no Alicanto e, com Nicole voando ao seu lado, retornou para o lar.


— Mandarei um recado a Srta. Heinstein logo que o Sol nascer — falou Nicole. — Esteja aqui antes das 16 horas, fui clara?


— Como cristal — afirmou Nathaniel.


Nicole guardou a caixa e sua chave no escritório de seu pai, desejou muitos pesadelos ao primo e retornou para os seus aposentos, Nathaniel, por sua vez, agradeceu ao Alicanto e o dispensou de sua incumbência, tomou um banho merecido para refrescar o corpo, então se deitou em sua confortável cama — de tão fatigado, sequer notou que, apesar da dor sentida, a mão com a qual segurara a Caixa de Pandora carecia de qualquer queimadura, assim como o restante de seu corpo...

Nathaniel não foi à escola naquele dia, ficou deitado na cama até o meio-dia, se contentou em almoçar macarrão instantâneo e dois copos de água, vestiu uma roupa preta e foi à biblioteca com intuito de aprender um pouco mais sobre magia enquanto esperava o relógio de Lucca anunciar às 16 horas, o que aconteceu duas horas mais tarde.

Nicole e a cliente já estavam no escritório quando o rapaz entrou pela sua porta, por causa de um atraso de cinco minutos, ele quem ficou em pé dessa vez, estático ao lado da prima, não se incomodou em participar da conversação, visto que ainda se sentia em débito com ela.


“Ela me salvou”, pensou Nathaniel melancolicamente, “Então que fique com todos os créditos”.


— Aqui está o ovo, como prometido — disse a Srta. Heinstein, que o entregou a Nicole.


— E eis aqui sua caixa — falou Nicole. — Juntamente com a chave para abri-la.


Pandora, sorridente, pegou os objetos, queria descobrir o mistério do conteúdo da caixa naquele instante, contudo Nicole pediu para que não o fizesse. — Por favor, entenda, eu não quero ser associada outra vez a este objeto — disse ela, gentilmente.


— Tudo bem — concordou Pandora.


Nathaniel acompanhou-a para fora de Lucca, escondeu sua preocupação ao acenar em despedida para ela, depois de seu encontro com o Deus da Forja, tinha mais certeza do que nunca de que não mais veria aquela moça.


E estava absolutamente correto.


Ela abriu a Caixa de Pandora ao alcançar a primeira esquina, ficou chateada por descobrir não haver nada em seu interior — um pensamento errôneo. De fato, havia algo dentro da caixa, Pandora simplesmente era incapaz de ver o seu conteúdo, porém Nathaniel, mesmo a distância, conseguiu enxergar: uma figura vagamente feminina, preta e alada — uma Ker, um Espírito de Morte Violenta que abraçou fortemente o corpo da moça.


Pandora Heinstein pereceu ao tentar atravessar a rua, atropelada por um ônibus, seu corpo foi esmagado e em seu último instante de vida, pôde enxergar a criatura que durante séculos tinha sido aprisionada pela sua família para que nunca mais assombrasse o Mundo dos Vivos.


“Ela morreu”.


Foi com esse pensamento que Nathaniel adormeceu naquele dia frígido de inverno.

Herança (ii)

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Trazido a realidade por aquele sentimento de perda, Nathaniel contemplou por uns instantes a possibilidade de passar o dia inteiro deitado na cama, flutuando por entre as memórias de dias mais aprazíveis, por fim, decidiu não fazê-lo ao se lembrar de uma frase dita constantemente pelo tio Noah: “Você pode aprender com o passado, contudo esses dias estão fadados a nunca retornar”.

— Eu não posso viver no passado — falou Nathaniel para si mesmo.


Ele ficou de pé e deu início a mais um dia de sua vida, tomou um banho gelado para espantar os resquícios da sonolência, se preparou um desjejum modesto, torradas e café, pôs o uniforme azul-escuro da escola, arrumou sua mochila e então subiu ao ônibus que o levava todos os dias ao centro da cidade, que era onde estudava.

Aquela foi uma manhã como outra qualquer, o rapaz assistiu às aulas do dia, fez as questões estipuladas pelos professores, conversou amigavelmente com os colegas de classe, almoçou ao meio-dia e tornou a atravessar os portões de Lucca às 15 horas, horário em que voltava da escola diariamente.


Tão logo adentrou na propriedade herdada, Nathaniel escutou uma voz feminina soltando um chamado, “Ei!”, ele girou os calcanhares de imediato, olhou para trás e notou a presença de uma moça bonita cuja aparência a denunciava como ligeiramente mais velha que sua prima.


— Boa tarde — disse Nathaniel polidamente.


Seguiu em direção à moça, mas parou repentinamente de se aproximar, pois se sentiu alarmado por um cheiro estranho que era exalado pela bolsa trazida pela moça, qual parecia ou não sentir o cheiro ou estar acostumada a ele.


— Boa tarde — retribuiu a moça. — Ah, é aqui que, uh, mora o Sr. Nash?


— O Sr. Nash faleceu recentemente — contou Nathaniel, o qual fez o possível para esconder o pesar em sua voz.


— Ah, entendo... — falou a moça decepcionada.


Ela se virou para ir embora.


— Com licença — disse Nathaniel.


— Sim?


— Se a senhorita está interessada em tratar de negócios com o Sr. Nash, então, uh, fique sabendo que eu estou encarregado de dar continuidade aos afazeres dele — falou.


Um sorriso surgiu no rosto da moça. — Fico feliz em escutar isso.


— Por favor, gostaria de me acompanhar ao escritório.


— Perfeitamente.


Nathaniel guiou a cliente ao cômodo em questão, se sentou na cadeira anteriormente ocupada por seu tio, pediu à moça que se acomodasse numa das cadeiras do outro lado da escrivaninha, ela recusou sua oferta de chá e biscoitos e mostrou seu desejo de falar de uma vez só sobre a razão de estar ali.


— Poderia me dizer, por favor, como chamá-la? — pediu Nathaniel.


— Pandora Heinstein.


— Um nome bonito — comentou Nathaniel, gentilmente. — Embora falso.


— Precaução nunca é demais nesse mundo — sorriu Pandora. — Eu nunca daria o meu nome verdadeiro a um desconhecido deste mundo, especialmente, um desconhecido relacionado ao Mago Nash.


— Perfeitamente — assentiu o rapaz. — O que a traz aqui, Srta. Heinstein?


— Isto.


Ela abriu a bolsa e retirou uma pequena caixinha preta desprovida de quaisquer adornos, seu formato e tamanho correspondiam a uma caixinha de brilhantes e o cheiro irradiado por ela era, sem qualquer sombra de dúvida, o mesmíssimo sentido por Nathaniel há poucos minutos.


— Esta caixa está em minha família há cinco gerações, contudo ninguém parece ser capaz de abri-la — explicou. — Nenhuma chave consegue destrancar essa fechadura, martelo algum obteve sucesso em danificá-la, todos os métodos convencionais já foram utilizados e também uma boa porção dos, ah... Sobrenaturais.


— Entendo — disse Nathaniel, analítico. — Nunca se perguntou a razão de a caixa ser tão fortemente trancada?


— É irrelevante — a cliente retrucou. — Sua relevância jaz no conteúdo.


— M... — Nathaniel nunca completou tal palavra.


A porta do escritório foi aberta violentamente e por ela surgiu Nicole, que seguiu para trás da escrivaninha, ficando lado a lado com o primo e de frente para a cliente. — Peço-lhe desculpas pelas perguntas de meu... — disse Nicole. — Por favor, por qual nome a senhorita atende?


— Pandora Heinstein — disse pela segunda vez.


— Pois bem, Srta. Heinstein — disse Nicole com uma simpatia que, certamente, não seria empregada quando fosse falar com Nathaniel mais tarde. — O que deseja?


— Eu desejo abrir esta caixa — ela apontou para o objeto sobre a escrivaninha.


— Posso? — indagou.


— Por favor — respondeu Pandora.


Nicole pegou a caixa e a analisou por alguns segundos, do mesmo modo que o primo, ela sentiu o odor desagradável emanado pelo objeto, todavia não demonstrou sentir qualquer incômodo em relação a isso, diferente de Nathaniel, Nicole estava perfeitamente acostumada àquele tipo de situação.


— É um objeto interessante — comentou Nicole, apática.


— De fato — concordou Nathaniel, contragosto da presença da prima ali.


— Não sei como a senhorita soube da existência deste lugar e tampouco me importo em saber, afinal, não é da minha conta quem fala da minha loja — disse a filha de Noah. — Creio, porém, que a senhorita esteja ciente de que não trabalhamos com dinheiro, mas com escambo.


— Sim, estou perfeitamente ciente disso.


— Ótimo — sorriu.


Nicole abriu a última gaveta da escrivaninha de seu pai, retirou de dentro dela uma balança de formato semelhante ao símbolo do signo de libra, daí o nome do objeto, Libra, colocou-a sobre a mesa, pousou a caixinha em seu prato direito e esperou pacientemente enquanto uma imagem ia se formando no prato desocupado, eventualmente, tal imagem entrou em foco, se tornando perfeitamente visível e denunciando sua identidade: um pequenino ovo amarelo com manchas vermelhas e laranjas aqui e acolá.


— Este é o preço — falou Nicole. — Abriremos sua caixa em troca deste ovo.


— Caso a senhorita não cumpra sua parte do acordo, a caixa e o seu conteúdo ficarão em nossa posse — interrompeu Nathaniel.


— É justo — disse Pandora. — Em quanto tempo descobrirão como abri-la?


— O tempo é uma ilusão, portanto irrelevante — disse Nicole, enigmática.


— Certo — havia certo desconforto na voz da cliente. — E como saberei que vocês cumprirão sua parte do trato? Afinal, o que os impede de ficar com a caixa para si?


Nicole desenhou um sorriso amarelo em seu rosto. — Nós da Dinastia Nash somos escravos das palavras e, portanto, estamos fadados a cumprir cada uma de nossas singelas promessas — explanou. — Acredite-me, Srta. Heinstein, a consequência resultante de uma quebra de promessa não vale qualquer tesouro deste mundo.


E Pandora Heinstein se convenceu inteiramente da seriedade do serviço prestado pela Dinastia Nash.

No instante posterior a saída da cliente, Nicole puxou o primo pelo braço e o levou de volta ao escritório, seu rosto apresentava traços de irritação e ela bufava como uma fera enfurecida — era incrível como sua personalidade serena e paciente desaparecia na íntegra quando ficava a sós com Nathaniel, seu desgosto por ele era sincero.

— Eu não posso mandá-lo embora daqui, tampouco posso impedi-lo de falar com os clientes da loja, entretanto se você ficará aqui, faça a gentileza de ficar fora do meu caminho e de não comprometer a integridade da loja — disse Nicole rispidamente a Nathaniel. — Nós da Dinastia Nash não fazemos perguntas, não tentamos descobrir o significado por trás das ações de nossos clientes, nós os recebemos, escutamos o seu pedido, executamos a tarefa e recebemos a nossa parte do acordo!


— Isso é estúpido! — berrou Nathaniel. — Você também sentiu! Você sabe tão bem quanto eu que aquilo dentro da caixa é maligno! Ela vai se machucar!


— Essa consequência não nos diz respeito — falou. — Troca Exata. Essa é a Lei de Lucca que o meu pai criou. O que acontecerá com ela depois de abrir a caixa é algo que diz respeito unicamente a ela!


— Mas...!


— Pare de tentar manchar a reputação do meu pai!


Ele não é o seu pai!


Nicole se recolheu aos seus aposentos, queria ter levado a caixa consigo, pois assim impediria o primo de investigá-la, infelizmente, o finado Nash tomara as medidas necessárias para que nenhum artefato da loja pudesse penetrar na parte ocidental de Lucca, pois temia pela segurança das crianças, desse modo, Nicole não teve escolha senão permitir que o primo permanecesse no escritório após sua saída.


Nathaniel saído do cômodo de trabalho duas vezes: da primeira vez para ir à cozinha arranjar uma compressa de gelo para colocar em contato com seu rosto, o qual fora acertado por uma bofetada desferida pela prima, e da segunda vez tinha ido à biblioteca com intuito de pegar todos os livros sobre objetos daquele tipo, isto é, protegidos por uma barreira tão rígida quanto aquela ao redor da Caixa de Pandora.

Uma barreira daquele mesmo tipo, mas de menor força, protegia a mansão, havia sido erguida há muitos anos pelo tio Noah e nem mesmo sua morte fizera com que desaparecesse, sendo uma criação dele, a azekah irradiava sua presença — embora no Mundo dos Mortos, Noah Nash permanecia protegendo seus entes queridos, nada além do esperado do maior feiticeiro do Mundo dos Vivos.


Há muito tempo, Hekate, a Deusa da Magia, deu seu coração para um humano, um feiticeiro, e com ele gerou dois filhos — um de natureza divina e outro de natureza mortal, enquanto Noah Nash era um verdadeiro deus entre os homens, Nigel Nash era apenas mais um homem. Essa abismal diferença, contudo, não afastou os filhos de Hekate, assim como seus ancestrais, Kastor e Pólux, Noah e Nigel nutriam um profundo amor materno um pelo outro, amor que o deus continuou a nutrir pelos descendentes de seu queridíssimo irmão.