Herança (iii)

Posted by on | |
Embora o sangue divino corresse por suas veias, Noah nunca se considerou um deus, na verdade, via-se como um humano de carne e osso, por isso fez de Lucca sua morada e com os homens viveu, sendo abençoado com o dom da imortalidade, poderia ter residido na Terra até o último suspiro de vida da última criatura mortal, contudo decidiu estar na hora de abandonar o Mundo dos Mortais e rumar ao encontro de sua mãe.

E foi assim que Noah Nash morreu.


Nathaniel tinha pleno conhecimento de sua ancestralidade, porém, como o falecido tio, não atribuía grande importância a ela, afinal, sendo descendente direto de Nigel Nash, o rapaz nunca apresentaria um domínio da magia sequer similar ao de Noah e também carecia de qualquer talento para aquela arte sobrenatural diferentemente de Nicole que apesar da falta de qualquer parentesco com a Deusa da Magia, havia se transformado numa feiticeira de enorme aptidão, tinha domínio dos Seis Elementos, sabia como erguer azekahis, podia sentir a magia de outro praticante e possuía enorme conhecimento oriundo dos anos e anos em que foi treinada pelo pai adotivo.


Por essas razões, o último Nash legítimo nunca ponderou a possibilidade de Nicole não ser apontada como herdeira absoluta da Lucca e suas responsabilidades, justamente por isso decidiu ir embora de Applefield para estudar, se não poderia ser um feiticeiro como seu pai postiço, Nathaniel queria ao menos se tornar a autoridade maior na profissão que escolhesse, mas o destino havia dado uma guinada e agora ali estava ele, sentado no chão do escritório de seu tio, rodeado por livros de magia e mitologia, buscando por uma maneira de abrir a Caixa da Pandora — se seu tio Noah apontara-o como herdeiro, então certamente deveria acreditar na capacidade de Nathaniel em honrá-lo no domínio da magia e ele fá-lo-ia de um jeito ou de outro.


A solução para o problema que assombrava seus pensamentos surgiu para Nathaniel em um sonho, muito cansado, o rapaz se acomodou no chão do escritório para cochilar, pois seria incapaz de descobrir como abrir aquele objeto se estivesse exausto demais até para pensar, fechou os olhos e se largou nas correntezas do Mundo dos Sonhos moldado pela tribo dos Oneiroi, como se por uma dádiva de Morfeu, Nathaniel se descobriu revivendo o seu encontro com a cliente algumas horas atrás, durante o sonho, repetiu o cognome dado por ela: Pandora Heinstein. Caixa de Pandora. Pandora. Quem havia forjado a existência de Pandora, a primeira mulher do mundo?


Nathaniel despertou com um nome em seus lábios: Hefaísto.


Apesar de sua total inaptidão para com a magia, Nathaniel aprendera como realizar alguns feitiços menores, em sua maioria, feitiços de evocação, isto é, que traziam criaturas místicas para perto dele e punham-nas sobre seu comando, por carecer do pendor natural de sua prima, Nathaniel sempre se sentia particularmente exausto após realizar esse tipo de ação, contudo estava disposto a ignorar o cansaço caso isso significasse provar a Nicole que ele também era digno de ser chamado de herdeiro.

Auxiliado por um livro, Nathaniel desenhou um círculo de magia no chão de um dos cômodos desocupados da área oriental de Lucca, enfeitou-o com os símbolos apropriados, acendeu seis velas ao seu redor, despejou a quantidade indicada de gamânio em pó sobre o desenho, decorou as palavras de evocação, limpou a garganta e respirou fundo antes de chamar ao seu encontro a criatura que o levaria ao lar de Hefaísto, o Deus da Forja.

Nathaniel proferiu as palavras de encanto, fazendo com que houvesse uma reação imediata com o círculo de magia, suas linhas de giz branco ganharam cores metálicas cuja luz projetou uma réplica do símbolo no teto do cômodo, este, por sua vez, desapareceu como se nunca tivesse existido, tornando possível para Nathaniel contemplar o céu noturno...


... E o gigantesco pássaro de coloração azul-metálica que pairava, obedientemente, sobre a sua cabeça, de acordo com o livro, tal criatura atendia pelo nome de Alicanto e tinha de ser alimentada com moedas de ouro e prata para que se mantivesse saudável. Sendo de natureza gentil, Nathaniel tratou de alimentar o pássaro místico com uma moeda de cada tipo, acariciou seu bico afiado, o qual possuía o tamanho do braço do rapaz, e então adentrou no círculo de magia, que o transportou para cima do pescoço de Alicanto, onde permaneceria até alcançar a Morada de Hefaísto.


Tão logo Nathaniel sussurrou o nome de seu destino, Alicanto bateu suas enormes asas e ascendeu, cortando o céu daquela noite sem estrelas, sua velocidade era superior a de qualquer carro existente, todavia não provocava desconforto algum em seu temporário mestre, isto ocorria devido ao círculo de magia que possuía também a função de resguardá-lo de qualquer perigo gerado pela natureza do Alicanto.


Depois de tanto tempo vivendo na Ilha de Lemnos, o Deus da Forja optou se distanciar dos mortais, transportou sua oficina e suas ferramentas para o topo de uma montanha acima das nuvens de onde poderia contemplar, ainda que com alguma dificuldade, as luzes do Olimpo, monte divino de onde fora expulso por sua mãe, Hera, por ter nascido imperfeito: carecia de uma perna.


Seu novo lar detinha de uma atmosfera estupidamente quente, dotada de rochas vermelhas e com pilastras tombadas de metais preciosos aqui, ali e acolá, sua entrada era um enorme portão de aço e ouro em que se podia ler, em grego, palavras irônicas de saudação, afinal, não haveria conforto algum em percorrer o caminho tortuoso e queimante que dava para sua Morada.


Sendo uma criatura associada ao metal, o Alicanto estava isento de qualquer moléstia naquele local, Nathaniel, por outro lado, sentia como se estivesse derretendo, tinha sua roupa ensopada de suor, os pensamentos derretiam, a necessidade de molhar a garganta crescia e a vontade de retornar para o conforto de seu lar parecia cada vez mais tentadora.


— Não! — ele falou. — Eu não posso voltar atrás!


E assim iniciou sua caminhada pela abrasante estrada de Hefaísto.


Suas pernas iam perdendo a força rapidamente, sua mão direita ardia ao sofrer com o calor absorvido pelo metal da Caixa de Pandora, as gotas de suor caiam sobre seus olhos, as juntas de seus membros doíam intensamente, a pele debaixo da roupa era lesada pelo calor e em pouco tempo suas últimas forças evaporaram — Nathaniel estava fadado a desabar sobre o metálico chão queimante. Hekate derramaria lágrimas por ele?


Mejarkon.


Uma bolha de água cobriu o corpo de Nathaniel, escudando-o de todos os perigos daquele terrível lugar.


— Seu idiota! — berrou uma voz conhecida.


Nicole surgira ao lado do primo, assim como ele, tinha uma bolha de água ao seu redor, consequência do feitiço Mejarkon.


— Obrigado — agradeceu Nathaniel, sincero.


Ela se aproximou dele, de modo que as duas bolhas d’água se tornassem uma só, englobando os herdeiros de Nash e possibilitando Nicole de acertar outra bofetada no rosto de Nathaniel, o qual estava debilitado demais até para sentir dor.


— O que você pensa que está fazendo?! — berrou Nicole. — Você não tem como se defender! Vir até aqui sozinho foi uma estupidez atroz!


— Desculpe, desculpe.


Outra bofetada lhe acertou o rosto. — Você tem muita sorte por eu ter sentido a magia de evocação! — falou. — Agora, dê-me a caixa!


Ciente de seu erro, Nathaniel fez como ordenado, uma vez com a caixa em mãos, sua prima se distanciou dele, separando as bolhas em consequência. — Idiota! — a prima tornou a dizer. — Fique perto de mim e faça apenas o que eu mandar, entendeu? — Nathaniel balançou a cabeça positivamente. — Ótimo — ela continuou a caminhada com o primo em seu encalço.


Uma vez escudados das maleficências do calor, Nicole e Nathaniel não encontraram dificuldade alguma em alcançar o fim do caminho: um templo de proporções gigantescas constituído, fundamentalmente, de rocha, ouro e aço — os materiais preferidos de Hefaísto. Estando diante da morada de uma divindade, os primos tiveram de agir com certa polidez, fizeram uma longa reverência, anunciaram seus nomes e então ficaram a esperar pela permissão para entrar no Templo de Hefaísto.


ENTREM — falou uma voz altissonante.


Nicole e Nathaniel entraram no templo, seguiram em linha reta pelo único corredor existente, desembocando em um salão de amplitude incomensurável ocupado por um único elemento: um colossal trono de metal no qual se sentava o Deus da Forja, um gigante de pele acinzentada, cabelos longos e esbranquiçados, desprovido de uma perna e de olhos fechados, entretanto plenamente acordado.


FALEM.


Nathaniel olhou para Nicole, depois de sua falta, não tinha a menor dúvida de que ela quem deveria falar com aquela criatura divina.


— Grande Hefaísto, Deus da Forja! Cá estamos para Lhe pedir um humilde obséquio! Pedimos para que Vossa Deidade nos construa uma chave adequada para abrir esta caixa! — ela ergueu a caixa acima de sua cabeça. — Obviamente, estamos dispostos a pagar-Lhe por este simplório serviço — complementou.


ESTÃO? E O QUE VOCÊS, MORTAIS, PODERIAM TER PARA MIM, UM DEUS?


“É verdade”, pensou Nathaniel, “Não há nada que possamos dar a Ele”.


Seu pensamento, contudo, era novamente errôneo.


Nicole colocou a mão dentro de suas vestes e retirou de dentro de um bolso interno um pequenino frasco em cujo interior havia pouquíssimos mililitros de um líquido brilhante de aparência similar a da água.


— Isto: Gotas de Lágrimas de Oceânide — respondeu. — Há quem diga que nem o Grande Esculápio consiga produzir tão bom remédio para os olhos!


O esticou seu indicador direito em direção ao corpo minúsculo de Nicole.


DÊ-ME A CAIXA.


Ela colocou o objeto na ponta do dedo gigante de Hefaísto, sentindo um ligeiro momento de dor, pois a atmosfera dentro do templo era infinitamente mais agressiva ao corpo humano do que o caminho até ali.


O Deus da Forja colocou a Caixa de Pandora na altura de seus olhos, apertou-os para enxergar melhor o formato da fechadura, arrancou uma lasquinha de seu troco com uma unha da mão livre, pô-la em sua boca, mastigou e mastigou, então a cuspiu sobre o objeto e o devolveu a Nicole.


DÊ-ME AS LÁGRIMAS, MORTAL.


Nicole obedeceu. Hefaísto abriu o frasco e pingou igualmente seu conteúdo nos olhos, piscou duas vezes e esboçou um sorriso deformado no rosto feio, era uma felicidade para ele, finalmente, estar livre daquela vista cansada gerada por milênios de existência.


— Nossos sinceros agradecimentos — disse Nicole.


ESCUTE-ME, MORTAL — falou o Deus da Forja. — NO INTERIOR DESTA CAIXA JAZ UM MALE QUE MORTAL ALGUM PODERÁ DOMAR, MANTENHA-A FECHADA SE TEM AMOR PELA SUA VIDA.


— Muito obrigada pelo aviso, Grande Hefaísto — agradeceu. — Eu, filha de Noah Nash, não tenho a menor intenção de abri-la.


SÁBIA DECISÃO. RETIRE-SE.


— Como desejar, Vossa Divindade — Nicole fez uma referência de despedida.


Ela e Nathaniel retornaram pelo mesmo caminho, ao se depararem com o Alicanto, o rapaz percebeu que nenhuma criatura havia trazido sua prima até aquele lugar, então como ela poderia estar ali? Sua resposta surgiu na forma de uma palavra dita por Nicole: Volaticus, ao pronunciá-la, a filha de Nash ganhou um par de asas de plumas brancas que brotaram de suas costas — sim, o talento de Nicole para com a magia era imenso, nem em seus sonhos mais loucos Nathaniel pensaria na possibilidade de transfigurar o próprio corpo.


O rapaz subiu no Alicanto e, com Nicole voando ao seu lado, retornou para o lar.


— Mandarei um recado a Srta. Heinstein logo que o Sol nascer — falou Nicole. — Esteja aqui antes das 16 horas, fui clara?


— Como cristal — afirmou Nathaniel.


Nicole guardou a caixa e sua chave no escritório de seu pai, desejou muitos pesadelos ao primo e retornou para os seus aposentos, Nathaniel, por sua vez, agradeceu ao Alicanto e o dispensou de sua incumbência, tomou um banho merecido para refrescar o corpo, então se deitou em sua confortável cama — de tão fatigado, sequer notou que, apesar da dor sentida, a mão com a qual segurara a Caixa de Pandora carecia de qualquer queimadura, assim como o restante de seu corpo...

Nathaniel não foi à escola naquele dia, ficou deitado na cama até o meio-dia, se contentou em almoçar macarrão instantâneo e dois copos de água, vestiu uma roupa preta e foi à biblioteca com intuito de aprender um pouco mais sobre magia enquanto esperava o relógio de Lucca anunciar às 16 horas, o que aconteceu duas horas mais tarde.

Nicole e a cliente já estavam no escritório quando o rapaz entrou pela sua porta, por causa de um atraso de cinco minutos, ele quem ficou em pé dessa vez, estático ao lado da prima, não se incomodou em participar da conversação, visto que ainda se sentia em débito com ela.


“Ela me salvou”, pensou Nathaniel melancolicamente, “Então que fique com todos os créditos”.


— Aqui está o ovo, como prometido — disse a Srta. Heinstein, que o entregou a Nicole.


— E eis aqui sua caixa — falou Nicole. — Juntamente com a chave para abri-la.


Pandora, sorridente, pegou os objetos, queria descobrir o mistério do conteúdo da caixa naquele instante, contudo Nicole pediu para que não o fizesse. — Por favor, entenda, eu não quero ser associada outra vez a este objeto — disse ela, gentilmente.


— Tudo bem — concordou Pandora.


Nathaniel acompanhou-a para fora de Lucca, escondeu sua preocupação ao acenar em despedida para ela, depois de seu encontro com o Deus da Forja, tinha mais certeza do que nunca de que não mais veria aquela moça.


E estava absolutamente correto.


Ela abriu a Caixa de Pandora ao alcançar a primeira esquina, ficou chateada por descobrir não haver nada em seu interior — um pensamento errôneo. De fato, havia algo dentro da caixa, Pandora simplesmente era incapaz de ver o seu conteúdo, porém Nathaniel, mesmo a distância, conseguiu enxergar: uma figura vagamente feminina, preta e alada — uma Ker, um Espírito de Morte Violenta que abraçou fortemente o corpo da moça.


Pandora Heinstein pereceu ao tentar atravessar a rua, atropelada por um ônibus, seu corpo foi esmagado e em seu último instante de vida, pôde enxergar a criatura que durante séculos tinha sido aprisionada pela sua família para que nunca mais assombrasse o Mundo dos Vivos.


“Ela morreu”.


Foi com esse pensamento que Nathaniel adormeceu naquele dia frígido de inverno.

0 comentários:

Postar um comentário