Herança (i)

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“Tio Noah morreu”.

Foi com esse pensamento que Nathaniel despertou naquele dia frígido de inverno.


Apesar de sua aparência, tio Noah era, na verdade, um homem de idade avançada, muito avançada, portanto seu padecimento não deveria afetar Nathaniel daquele jeito, afinal, ele sabia perfeitamente que o tio não permaneceria no Mundo dos Vivos por muito tempo, nas palavras do próprio falecido, “Eu estou disputando uma partida de xadrez com o Anjo da Morte, e, que puxa! Creio que minhas chances de vitória são bastante limitadas”.


E então finalmente aconteceu: tio Noah, o sorridente e brincalhão tio Noah morreu.


O último contato de Nathaniel com o queridíssimo tio acontecera há dois meses, em virtude do aniversário do sobrinho, tio Noah resolveu visitá-lo em Halifax por um dia, lhe deu um presente repleto de significado — um pingente feito de uma pedra branca, o qual tinha sido feito por ele próprio —, fez um longo e divertido discurso sobre como um homem alcança o vértice de sua beleza e sua força aos dezoito anos, cobriu os gastos de um jantar de Rei e despediu-se com um abraço apertado e palavras que ecoariam na mente de Nathaniel até o seu último dia de vida: eu tenho orgulho de você, Nate.


Depois daquele dia, a vida de Nathaniel continuou como normalmente, assistiu às aulas no Interno durante a semana, perambulou por seus locais preferidos de Halifax com os amigos no fim de semana e, na terceira semana de outubro, recebeu uma visita nunca por ele esperada: sua prima, Nicole.


Nicole quem serviu como mensageira da trágica notícia, sem qualquer consideração ao primo, anunciou friamente a morte do pai adotivo, mandou que Nathaniel arrumasse sua bagagem de imediato e lhe disse para encontrá-la na estação de trem às 10 horas daquele dia, pois o funeral aconteceria dali a seis horas e, embora desgostasse do primo, sabia perfeitamente que seu amado guardião ficaria entristecido caso ele estivesse ausente de seu funeral.


— Além do mais, o seu nome está no testamento.


Nicole, assim como Nathaniel, era uma criança carente de pai e mãe, diferente do primo, no entanto, ela não possuía qualquer parentesco direto com o finado tio Noah cujo irmão caçula havia sido avô de Nathaniel. Tal fato fazia com que Nicole sentisse certa inveja do primo, um sentimento infundado, pois tio Noah nunca fez distinção entre o seu sobrinho-neto e a menina de doze anos que encontrou suplicando por alguns trocados em uma esquina há uma década.


Em meia hora, Nathaniel arrumou seus pertences, pediu a um amigo que enviasse um recado ao Diretor do internato explicando a razão de sua súbita partida, se despediu das pessoas por quem sentia afeto — dentre elas, Anya, uma pessoa bastante importante para ele —, então partiu em direção ao terminal, se encontrou com Nicole, a qual não perdeu a chance de criticá-lo sobre o estado amarrotado de sua roupa e os pingos de suor que escorriam pelo seu rosto, pegou seu bilhete e pouco depois embarcou no trem para Applefield, o lar do querido tio Noah.


O funeral aconteceu na Igreja de São Ricardo cujo padre era um velho amigo do tio de Nathaniel, como tudo relacionado ao mesmo, o ritual atraiu uma variedade de pessoas estranhas que mais pareciam ter saídos de um livro de contos de fada ou mesmo de lendas e mitos, eram pessoas altas demais, baixas demais, peludas, carecas, de vestes negras, de vestes brancas, de vestes coloridas, enfeitadas com pingentes, anéis e brincos exóticos, Nathaniel reconheceu algumas daquelas pessoas e Nicole foi cumprimentada por quase todas.


Após o sepultamento, Nathaniel e Nicole sediaram um pequeno banquete para os convidados como era de costume, tal evento aconteceu em Lucca, uma enorme mansão situada no subúrbio da cidade que servia tanto de residência quanto de local de trabalho para o tio Noah, todo o lado oriental da construção fazia parte de sua... Loja.


Tio Noah era uma pessoa esdrúxula, e o mesmo pode ser dito de seu trabalho.


— Minhas mais sinceras condolências — falou o Sr. Ferguson, advogado do falecido e o portador do testamento.


— Muito obrigada — agradeceu Nicole, exausta de sua condição de anfitriã.


— Sim, sim, muito obrigado — disse também Nathaniel.


O Sr. Ferguson, que era um homem gorducho e bastante calvo, conduziu-os até o escritório de tio Noah, se sentou no sofá de veludo paralelo a escrivaninha de afazeres, pediu aos primos para virarem as cadeiras em frente à mesma de modo que ficassem de frente para ele, daí abriu sua volumosa pasta de documentos, retirou cuidadosamente um escrito de seis folhas grampeadas — o testamento, e começou a lê-lo.


O rosto de Nicole se transformou em uma máscara de fúria tão logo o advogado leu a primeira cláusula da Vontade de tio Noah, Nathaniel, por sua vez, ficou inteiramente embasbacado; duas reações diferentes para um mesmo fato: o herdeiro da loja — ele e ela.


Desde o dia o em que tio Noah foi buscá-lo no hospital após o acidente responsável pelo perecimento de seus pais, Nathaniel tinha absoluta certeza de que não sentia o menor desejo de dar continuidade ao negócio de seu guardião legal, afinal, como poderia? Diferente de Nicole, ele nunca demonstrara o talento necessário para seguir aquele tipo de vida, apesar de ter a capacidade de ver, sentir e tocar, Nathaniel era incapaz de se proteger... E a carência dessa habilidade tinha a morte como consequência naquele ramo.


Embora se sentisse inapto àquela tarefa, Nathaniel decidiu que deveria honrar o pedido final daquele quem tinha sido seu pai pelos últimos doze anos, sua decisão intensificou a ira sentida por Nicole, que o lembrou de suas limitações e expressou sua total falta de vontade de trabalhar lado a lado com ele — e de protegê-lo.


— É bom que você não conte comigo caso sua vida esteja por um fio! — ela berrou antes de fechar a porta violentamente.


Não obstante das dificuldades, Nathaniel não voltou atrás, tratou de cuidar de todos os assuntos necessários para assegurar sua estadia em Lucca, se matriculou numa escola da cidade, trouxe os pertences restantes para o lugar, se instalou em seu antigo quarto e, repleto de determinação, proclamou à Nicole: “Aqui estou eu”. E aqui ele pretendia permanecer.


Havia retornado a Applefield fazia uma semana e cliente algum aparecera, sem ter de se preocupar com a loja, o rapaz tratou de se ocupar com seus deveres da escola e algumas tarefas domésticas, explorou os aposentos da mansão para aquecer suas lembranças daquele lugar, limpou a poeira e a sujeira, cozinhou sua própria comida e, quando sentia insônia, ia à gigantesca biblioteca do tio procurar um livro que chamasse o sono.


Quanto a Nicole, ela passava a maior parte do dia trancada ou em seu quarto ou no depósito da loja, do fundo de seu coração, queria ser a sucessora legítima de tio Noah, para ela, ter de dividir essa posição com o primo era incomensuravelmente pior do que não ter sido sequer mencionada no testamento. Naquela semana, só foi vista por Nathaniel quando ia à cozinha para preparar uma refeição e ao pátio para tomar um banho de sol.


Tal rotina encontrou seu fim na terça-feira 23 de outubro quando os herdeiros de Noah Nash receberam seu primeiríssimo cliente.

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