Herança (ii)

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Trazido a realidade por aquele sentimento de perda, Nathaniel contemplou por uns instantes a possibilidade de passar o dia inteiro deitado na cama, flutuando por entre as memórias de dias mais aprazíveis, por fim, decidiu não fazê-lo ao se lembrar de uma frase dita constantemente pelo tio Noah: “Você pode aprender com o passado, contudo esses dias estão fadados a nunca retornar”.

— Eu não posso viver no passado — falou Nathaniel para si mesmo.


Ele ficou de pé e deu início a mais um dia de sua vida, tomou um banho gelado para espantar os resquícios da sonolência, se preparou um desjejum modesto, torradas e café, pôs o uniforme azul-escuro da escola, arrumou sua mochila e então subiu ao ônibus que o levava todos os dias ao centro da cidade, que era onde estudava.

Aquela foi uma manhã como outra qualquer, o rapaz assistiu às aulas do dia, fez as questões estipuladas pelos professores, conversou amigavelmente com os colegas de classe, almoçou ao meio-dia e tornou a atravessar os portões de Lucca às 15 horas, horário em que voltava da escola diariamente.


Tão logo adentrou na propriedade herdada, Nathaniel escutou uma voz feminina soltando um chamado, “Ei!”, ele girou os calcanhares de imediato, olhou para trás e notou a presença de uma moça bonita cuja aparência a denunciava como ligeiramente mais velha que sua prima.


— Boa tarde — disse Nathaniel polidamente.


Seguiu em direção à moça, mas parou repentinamente de se aproximar, pois se sentiu alarmado por um cheiro estranho que era exalado pela bolsa trazida pela moça, qual parecia ou não sentir o cheiro ou estar acostumada a ele.


— Boa tarde — retribuiu a moça. — Ah, é aqui que, uh, mora o Sr. Nash?


— O Sr. Nash faleceu recentemente — contou Nathaniel, o qual fez o possível para esconder o pesar em sua voz.


— Ah, entendo... — falou a moça decepcionada.


Ela se virou para ir embora.


— Com licença — disse Nathaniel.


— Sim?


— Se a senhorita está interessada em tratar de negócios com o Sr. Nash, então, uh, fique sabendo que eu estou encarregado de dar continuidade aos afazeres dele — falou.


Um sorriso surgiu no rosto da moça. — Fico feliz em escutar isso.


— Por favor, gostaria de me acompanhar ao escritório.


— Perfeitamente.


Nathaniel guiou a cliente ao cômodo em questão, se sentou na cadeira anteriormente ocupada por seu tio, pediu à moça que se acomodasse numa das cadeiras do outro lado da escrivaninha, ela recusou sua oferta de chá e biscoitos e mostrou seu desejo de falar de uma vez só sobre a razão de estar ali.


— Poderia me dizer, por favor, como chamá-la? — pediu Nathaniel.


— Pandora Heinstein.


— Um nome bonito — comentou Nathaniel, gentilmente. — Embora falso.


— Precaução nunca é demais nesse mundo — sorriu Pandora. — Eu nunca daria o meu nome verdadeiro a um desconhecido deste mundo, especialmente, um desconhecido relacionado ao Mago Nash.


— Perfeitamente — assentiu o rapaz. — O que a traz aqui, Srta. Heinstein?


— Isto.


Ela abriu a bolsa e retirou uma pequena caixinha preta desprovida de quaisquer adornos, seu formato e tamanho correspondiam a uma caixinha de brilhantes e o cheiro irradiado por ela era, sem qualquer sombra de dúvida, o mesmíssimo sentido por Nathaniel há poucos minutos.


— Esta caixa está em minha família há cinco gerações, contudo ninguém parece ser capaz de abri-la — explicou. — Nenhuma chave consegue destrancar essa fechadura, martelo algum obteve sucesso em danificá-la, todos os métodos convencionais já foram utilizados e também uma boa porção dos, ah... Sobrenaturais.


— Entendo — disse Nathaniel, analítico. — Nunca se perguntou a razão de a caixa ser tão fortemente trancada?


— É irrelevante — a cliente retrucou. — Sua relevância jaz no conteúdo.


— M... — Nathaniel nunca completou tal palavra.


A porta do escritório foi aberta violentamente e por ela surgiu Nicole, que seguiu para trás da escrivaninha, ficando lado a lado com o primo e de frente para a cliente. — Peço-lhe desculpas pelas perguntas de meu... — disse Nicole. — Por favor, por qual nome a senhorita atende?


— Pandora Heinstein — disse pela segunda vez.


— Pois bem, Srta. Heinstein — disse Nicole com uma simpatia que, certamente, não seria empregada quando fosse falar com Nathaniel mais tarde. — O que deseja?


— Eu desejo abrir esta caixa — ela apontou para o objeto sobre a escrivaninha.


— Posso? — indagou.


— Por favor — respondeu Pandora.


Nicole pegou a caixa e a analisou por alguns segundos, do mesmo modo que o primo, ela sentiu o odor desagradável emanado pelo objeto, todavia não demonstrou sentir qualquer incômodo em relação a isso, diferente de Nathaniel, Nicole estava perfeitamente acostumada àquele tipo de situação.


— É um objeto interessante — comentou Nicole, apática.


— De fato — concordou Nathaniel, contragosto da presença da prima ali.


— Não sei como a senhorita soube da existência deste lugar e tampouco me importo em saber, afinal, não é da minha conta quem fala da minha loja — disse a filha de Noah. — Creio, porém, que a senhorita esteja ciente de que não trabalhamos com dinheiro, mas com escambo.


— Sim, estou perfeitamente ciente disso.


— Ótimo — sorriu.


Nicole abriu a última gaveta da escrivaninha de seu pai, retirou de dentro dela uma balança de formato semelhante ao símbolo do signo de libra, daí o nome do objeto, Libra, colocou-a sobre a mesa, pousou a caixinha em seu prato direito e esperou pacientemente enquanto uma imagem ia se formando no prato desocupado, eventualmente, tal imagem entrou em foco, se tornando perfeitamente visível e denunciando sua identidade: um pequenino ovo amarelo com manchas vermelhas e laranjas aqui e acolá.


— Este é o preço — falou Nicole. — Abriremos sua caixa em troca deste ovo.


— Caso a senhorita não cumpra sua parte do acordo, a caixa e o seu conteúdo ficarão em nossa posse — interrompeu Nathaniel.


— É justo — disse Pandora. — Em quanto tempo descobrirão como abri-la?


— O tempo é uma ilusão, portanto irrelevante — disse Nicole, enigmática.


— Certo — havia certo desconforto na voz da cliente. — E como saberei que vocês cumprirão sua parte do trato? Afinal, o que os impede de ficar com a caixa para si?


Nicole desenhou um sorriso amarelo em seu rosto. — Nós da Dinastia Nash somos escravos das palavras e, portanto, estamos fadados a cumprir cada uma de nossas singelas promessas — explanou. — Acredite-me, Srta. Heinstein, a consequência resultante de uma quebra de promessa não vale qualquer tesouro deste mundo.


E Pandora Heinstein se convenceu inteiramente da seriedade do serviço prestado pela Dinastia Nash.

No instante posterior a saída da cliente, Nicole puxou o primo pelo braço e o levou de volta ao escritório, seu rosto apresentava traços de irritação e ela bufava como uma fera enfurecida — era incrível como sua personalidade serena e paciente desaparecia na íntegra quando ficava a sós com Nathaniel, seu desgosto por ele era sincero.

— Eu não posso mandá-lo embora daqui, tampouco posso impedi-lo de falar com os clientes da loja, entretanto se você ficará aqui, faça a gentileza de ficar fora do meu caminho e de não comprometer a integridade da loja — disse Nicole rispidamente a Nathaniel. — Nós da Dinastia Nash não fazemos perguntas, não tentamos descobrir o significado por trás das ações de nossos clientes, nós os recebemos, escutamos o seu pedido, executamos a tarefa e recebemos a nossa parte do acordo!


— Isso é estúpido! — berrou Nathaniel. — Você também sentiu! Você sabe tão bem quanto eu que aquilo dentro da caixa é maligno! Ela vai se machucar!


— Essa consequência não nos diz respeito — falou. — Troca Exata. Essa é a Lei de Lucca que o meu pai criou. O que acontecerá com ela depois de abrir a caixa é algo que diz respeito unicamente a ela!


— Mas...!


— Pare de tentar manchar a reputação do meu pai!


Ele não é o seu pai!


Nicole se recolheu aos seus aposentos, queria ter levado a caixa consigo, pois assim impediria o primo de investigá-la, infelizmente, o finado Nash tomara as medidas necessárias para que nenhum artefato da loja pudesse penetrar na parte ocidental de Lucca, pois temia pela segurança das crianças, desse modo, Nicole não teve escolha senão permitir que o primo permanecesse no escritório após sua saída.


Nathaniel saído do cômodo de trabalho duas vezes: da primeira vez para ir à cozinha arranjar uma compressa de gelo para colocar em contato com seu rosto, o qual fora acertado por uma bofetada desferida pela prima, e da segunda vez tinha ido à biblioteca com intuito de pegar todos os livros sobre objetos daquele tipo, isto é, protegidos por uma barreira tão rígida quanto aquela ao redor da Caixa de Pandora.

Uma barreira daquele mesmo tipo, mas de menor força, protegia a mansão, havia sido erguida há muitos anos pelo tio Noah e nem mesmo sua morte fizera com que desaparecesse, sendo uma criação dele, a azekah irradiava sua presença — embora no Mundo dos Mortos, Noah Nash permanecia protegendo seus entes queridos, nada além do esperado do maior feiticeiro do Mundo dos Vivos.


Há muito tempo, Hekate, a Deusa da Magia, deu seu coração para um humano, um feiticeiro, e com ele gerou dois filhos — um de natureza divina e outro de natureza mortal, enquanto Noah Nash era um verdadeiro deus entre os homens, Nigel Nash era apenas mais um homem. Essa abismal diferença, contudo, não afastou os filhos de Hekate, assim como seus ancestrais, Kastor e Pólux, Noah e Nigel nutriam um profundo amor materno um pelo outro, amor que o deus continuou a nutrir pelos descendentes de seu queridíssimo irmão.

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