O som do silêncio

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Como em um sonho agitado... Não, como em um pesadelo, eu caminho sozinho ao longo de uma rua estreita de paralelepípedo debaixo do halo luminoso formada pelos lampiões, ajeito meu colarinho para me proteger do frio e da umidade e continuo minha andança sem destino, parando imediatamente quando avisto uma luz de néon no horizonte.

Dez mil pessoas, talvez mais, cujos rostos foram transformados em máscaras de medo e sofrimento por aquele fenômeno cataclísmico que roubou a vida da humanidade, de quase toda a humanidade... Eu grito na esperança de encontrar outros sobreviventes, contudo minhas palavras soam como gotas silenciosas da chuva melancólica que toca a face do planeta silencioso e ensopa minhas vestes e meu corpo.

Eu procuro por um lugar para me escudar do aguaceiro, optando desta vez pelo metrô do perímetro, abrigo-me no subterrâneo, deito-me em um banco qualquer, daí delineio um sorriso amarelo quando percebo as palavras dos profetas escritas em letras garrafais na parede do outro lado dos trilhos — O fim está próximo! 21/12/2012! Para ser sincero, eu sequer sei quem deveria amaldiçoar: os maias por terem proferido o fim, ou aqueles que tomaram a profecia como algo indigno de seriedade.


Eu permaneço de olhos fechados durante uma hora inteira, entretanto falho em adormecer, isso tem acontecido bastante ultimamente, em um autêntico caso de ironia, resolvo me distrair do cansaço proporcionado pela minha tentativa de adormecer com música e literatura, ligo meu aparelho de mp3 para escutar a melodia criada por Simon & Garfunkel e continuo minha leitura de O Cair da Noite, um clássico de Isaac Asimov.

Quando eu sinto o nascer do sol, levanto-me e retorno ao mundo acima da terra, então me preparo um desjejum na minha lanchonete preferida, tomo um banho em um lar qualquer, procuro por roupas que me sirvam e rumo para a biblioteca municipal, na qual tenho passado a maior parte do meu tempo — desde pequeno, estudar sempre foi uma atividade relaxante para mim.

Nós últimos dois anos, eu aprendi Astrofísica, Bioquímica, Geografia Territorial e muitos outros assuntos, dentre estes, alguns que realmente em nada me interessam, no entanto detentores de um papel fundamental para manter a minha sanidade.


Uma vez por semana, eu rumo à residência na qual há uma televisão de LCD para me entreter com filmes e seriados do passado, por sinal, eu creio ter assistido tanto todas as temporadas de Seinfeld que consegui decorar cada singela fala de cada episódio, uma atividade que obteve êxito em me distrair durante vários meses.

Ao terminar de ler o livro de Asimov, sigo para a praça no centro da cidade onde eu, anos atrás, ajoelhei-me e pedi o amor da minha vida em casamento, lembro-me como se fosse ontem... O jeito como estávamos vestidos, o que fizemos antes de ali chegar, as piadas por mim contadas, os risos dela, o sentimento ao ter nossos dedos entrelaçados, o cheiro de seu perfume... Eu me lembro de tudo e ao me lembrar do momento em que ela presenteou-me com um “Sim”, sinto uma pontada de felicidade mesclada com nostalgia, eu tive uma boa vida — digo “tive” porque hoje em dia eu simplesmente existo ao invés de viver.

Uma confluência de surge em minha mente e, de repente, vejo-me recordando do dia do nosso casamento, do nascimento do nosso primogênito, do nosso segundo filho e finalmente do nosso filho caçula, dos abraços apertados e dos beijos apaixonados de quando ascendi na hierarquia do emprego, das crianças aprendendo a falar e a andar, crescendo e virando adolescentes e adultos, cada um deles trilhando seu próprio caminho e construindo sua família enquanto eu e minha amada os observamos orgulhosamente. Oh, como eram bons aqueles tempos! É uma pena que nunca poderão voltar...


É então que decido visitar o local onde eu me encontrara quando aquilo ocorreu, dirijo meu carro, um Bentley, para o antigo apartamento de meu filho primogênito, subo as escadas até o sétimo andar, daí eu adentro em sua residência, com exceção dos corpos que tratei de enterrar, tudo permanece como naquele dia vinte anos atrás, eu me sento em minha poltrona favorita, qual meu filho comprou unicamente para mim, estico meus pés para frente e olho ao redor, revivendo aquela noite de festa, o quarto aniversário de meu segundo neto, o primogênito do meu primogênito — e uma lágrima solitária corre pelo meu rosto.

Minha visão para ao avistar uma foto tirada no meu terceiro ano de casamento, pego-a com cuidado e respeito, admiro a aparência de minha esposa, seu rosto delicado, seus cabelos castanho-escuros, seu vestido preto de festa e aquele sorriso que conseguiu me conquistar tão logo nos vimos pela primeira vez na casa de praia de um amigo em comum, pobre coitado! E pensar que ele morreu ainda conservando o amor absoluto que por ela sentia! Abençoado seja você, meu amigo, que pôde envelhecer e morrer enquanto cá estou eu: inalterável.


Há muito, muito tempo, eu era um escravo profundamente amedrontado pela minha mortalidade, em uma noite tempestuosa, entrei escondido na mansão de meu senhor, percorri o caminho até a academia e apanhei um de seus grimórios, abri-lo e procurei ansiosamente por um ritual que pudesse salvar-me do terrível pavor da morte, ao encontrá-lo, rabisquei um pentagrama no chão usando giz branco, acendi uma vela em cada vértice, proferi as palavras do encantamento, evocando uma fumaça preta e um cheiro forte de enxofre para dentro do quarto, tão logo a fumaça se dissipou, descobri-me diante de um cavalheiro de rosto simpático trajado de branco no interior da figura.


— Boa-noite — cumprimentou-me.


— Boa-noite — retribuí.


— Você é um demônio? — eu, um tanto incrédulo, perguntei.


— Um diabo, na verdade — corrigiu-me. — Pertenço à alta hierarquia do inferno. Meu nome é Mefistófeles.


“Não é de se admirar que haja nobres no inferno”.

— E qual é o seu nome, humano?

— Meu número é 13, acho pode me chamar assim... — respondi em tom incerto.


— O número do azar, ou assim dizem — comentou. — Diga-me, humano, qual é o desejo do seu coração?


Eu engoli em seco, era por aquele momento que tanto havia esperado.


— Eu quero ser imortal.


O diabo estalou seus dedos e eu senti o meu interior enregelar.


— Feito. Por favor, tenha a bondade de mandar-me de volta ao meu lugar, há uma festa acontecendo enquanto nos falamos.


— Espere! — exclamei. — E quanto ao preço?


— O preço?


— Sim! — apontei para o livro largado no chão. — O livro disse que há sempre um preço.


— O preço, humano, é a sua morte — contou-me o diabo.


Um sorriso maligno apareceu em seu rosto.


— Você andará pelo mundo condenado a nunca sentir a tranquilidade da morte, a priori, acreditará que sua imortalidade é uma bênção, todavia quando sentir na carne a melancolia de presenciar o padecimento de tudo e de todos que lhe trazem felicidade, sofrerá pela eternidade.


Eu me deito em uma cama de hotel, fito o teto espelhado, vejo minha imagem refletida na superfície de vidro, escuto o eco da profecia de Mefistófeles e me desatino a gargalhar perante meu futuro — uma eternidade munida de solidão.



Para mim é suficiente à honra de pertencer ao universo — um grande universo, e assim um grande esquema de acontecimentos. Nem mesmo a Morte pode me roubar tal honra. Pois nada pode alterar o fato de que eu vivi; eu fui eu, mesmo que por tão pouco tempo. E quando eu estou morto, a matéria que constitui o meu corpo é indestrutível — e eterna, aconteça o que acontecer com a minha “alma”, meu pó continuará a existir, cada átomo de mim estará executando sua determinada função — eu ainda terei “um dedo na torta”. Quando eu estiver morto, você pode me escaldar, me queimar, me afogar, me dilacerar — mas você não pode me destruir: meus pequenos átomos meramente caçoariam de tal vingança. A Morte nada pode fazer além de matar você.

The Journal of the Disappointed Man, Bruce Frederick Cummings.

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