Uma tarde com o Sr. T

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De qualquer modo: eu não sou abençoada ou misericordiosa. Eu sou apenas eu. Eu tenho um trabalho a fazer e eu o faço. Escute: mesmo enquanto estamos andando, eu estou lá pelos velhos e jovens, inocentes e culpados, aqueles que morrem acompanhados e aqueles que morrem sozinhos. Eu estou em carros e em barcos e em aviões, em hospitais e florestas e matadouros. Para alguns povos, a morte é uma libertação e, para outros, a morte é uma abominação, uma coisa terrível. Mas no final, eu estou lá por todos eles.
—Morte (dos Eternos) em Sandman #20: Fachada.


Perséfone acordou quando a gritaria do despertador arrancou-a repentinamente do seu mundo de sonhos, esticou um braço para fora do emaranhado de lençóis e acertou uma pancada no objeto, silenciando-o. Ainda um tanto sonolenta, a moça de vinte e um anos permaneceu deitada por algum tempo, fitando um espaço vazio no teto e pensando em uma maneira divertida de aproveitar aquele dia — carpe diem era sua promessa.

Por fim, levantou-se, entrou no banheiro, largou o pijama — uma camisa velha e um short desbotado — no chão, tomou um banho enregelante para espantar os restos da sonolência, colocou uma roupa preta de estilo gótico, maquilou o rosto, pegou sua bolsa e um livro, O Retrato de Dorian Gray, antes de ir ao outro lado da rua para desfrutar de seu típico desjejum: um copo de café preto e forte e três pães de queijo.


Ela cumprimentou o atendente, pediu sua refeição, esperou por esta no balcão, se sentou em sua mesa habitual, abriu o livro em cima dela, intercalando entre ler a história do nobre corrompido e sua alimentação, de tão absorta em suas tarefas, demorou alguns instantes para notar a presença de um homem parado a sua frente.

— Posso me sentar aqui, mocinha? — ele perguntou.


Perséfone olhou ao redor, notando a existência de várias mesas desocupadas.


— Pode sim — ela respondeu, ainda que intrigada.


O homem, um senhor negro e sexagenário, se acomodou no assento oposto ao de Perséfone, pediu à garçonete que lhe servisse uma xícara de café com leite, bebericou um tantinho do líquido, daí esboço um sorriso e ficou a encarar a leitora, que se sentiu ligeiramente incomodada com aquilo.


— Desculpe — falou Perséfone. —, mas por que o senhor esta me encarando? — questionou. — Há algo no meu rosto, ou coisa do tipo?


Ele soltou uma gargalhada, um som que provocou uma peculiar sensação de paz e de segurança nas profundezas da alma da moça gótica.


— Essa “roupa” — ele apontou para sua pele. —, me deixa tão diferente que você nem consegue me reconhecer?


— Eu não estou entendendo... — houve um estalo na mente de Perséfone. — Sr. T! — ela, repleta de alegria, exclamou.


Perséfone inclinou o corpo para frente e deu um abraço apertado e afetuoso no sexagenário.


— Nossa! Faz muito tempo desde quando nos encontramos pela última vez!


— Na verdade, meu anjo, faz muito tempo desde quando você me viu pela última vez, eu nunca deixei de vê-la.


Ela cruzou os braços.


— E por que nunca me permitiu vê-lo, hein? — quis saber.


O homem, Sr. T, encolheu os ombros.


— Porque achei desnecessário — ele disse. —, a meu ver, você parecia estar indo muito bem.


— E eu estou indo muito bem, obrigada — afirmou Perséfone.


— Exatamente.


— Então, se eu estou indo muito bem e o senhor acha desnecessário me visitar quando estou indo muito bem, por que esta aqui na minha frente agora?


— Porque eu senti saudade de você — respondeu o Sr. T com simplicidade.


Um sorriso instantâneo apareceu no rosto de Perséfone.


— Mas como o senhor é adorável! — ela, aos risinhos, comentou.


— Obrigado, querida — Sr. T bebericou mais um pouco de seu café. —, mas me diga, meu anjo, o que há de novo?


Ela franziu a testa.


— Ora, o senhor não deveria saber de tudo já que tem me observado?


— Eu sei de tudo — ele falou. —, contudo acho apropriado que você me conte suas novidades com suas próprias palavras — explicou o Sr. T. —, afinal, é da sua vida que nós estamos falando.


— Certo, então, uh — a moça pensou por um momento. —, minha reabilitação esta quase no fim — mostrou os pulsos: em cada um havia uma cicatriz proveniente de um corte de gilete. —, em pouco tempo estarei desenhando outra vez.


— Mas essa é uma ótima novidade! — comemorou o Sr. T batendo palmas. — Eu quero que me faça um desenho quando estiver tudo de volta ao normal.


— Nem tinha de pedir — disse Perséfone. —, o primeiro desenho que eu fizer será para o senhor.


— Obrigado — ele agradeceu do fundo do coração, metaforicamente falando, é claro, afinal, não é como se possuísse, de fato, um coração. —, e quanto aos garotos, hein? — perguntou. — Esta namorando?


— Nah — respondeu. — Namorar é algo complicado demais para essa minha cabecinha — falou. — Eu me sinto desconfortável com a nomenclatura, entende? Não gosto de ser referida como “a namorada do fulano”.


— Entendo-lhe — disse o Sr. T. —, eu também detesto quando sou chamado de “o filho da Noite” — comentou. —, depois de tanto tempo, eu creio já ter saído debaixo da sombra de minha mãe — ele terminou sua xícara de café. —, eu estou com vontade de passear um pouco, me acompanha?


— Certamente que sim — respondeu Perséfone prontamente. — Não é todo mundo que tem uma chance dessas.


— Na verdade, minha querida, toda e qualquer pessoa passeia comigo em algum determinado momento — corrigiu. —, a diferença é que você, pela segunda vez seguida, viverá para se lembrar disso.


— Sinto-me lisonjeada — disse Perséfone.


O Sr. T sorriu.


— Garçonete, a conta, por favor!


Ele, um autêntico cavalheiro, pagou tanto a sua xícara de café quanto o desjejum de sua amiga, deu-lhe o braço para que ela o acompanhasse, então seguiram em direção a Praça do Centro, onde permaneceram durante até o meio-dia, hora passeando para lá e para cá, hora parando para descansar e para observar o movimento, almoçaram em um restaurante normalmente frequentado pela alta sociedade, sentiram-se muito satisfeitos com a qualidade das refeições escolhidas e com os olhares escandalizados com que a clientela usual do estabelecimento lhes lançava.


Foram ao cinema de tardezinha, eles assistiram ao O Sétimo Selo, o qual rendeu alguns comentários desdenhosos da parte de Sr. T acerca do quadro Dança da Morte cuja lugubridade era demais para ele, depois do filme, tomaram sorvete e compraram uma calça jeans nova para Perséfone, que o Sr. T fez questão de pagar, dizendo-lhe ser um presente de aniversário atrasado, a moça tentou dissuadi-lo da ideia, todavia falhou miseravelmente: quando o Sr. T punha algo na cabeça, nada poderia fazê-lo voltar atrás.


Ao final do dia, o Sr. T acompanhou Perséfone de volta ao seu prédio, deu-lhe um beijo de boa-noite na testa como um avô carinhoso, afagou seus cabelos, andou até o meio da rua, então se voltou para ela e acenou antes de desaparecer quando Perséfone piscou seus olhos.


Ela retornou ao seu apartamento, tomou um banho para retirar as impurezas da cidade grande, colocou uma roupa qualquer de ficar em casa, assistiu a um programa de auditório na televisão, jantou macarrão instantâneo, se deitou em sua cama e tornou a fitar o espaço vazio no teto, desta vez, porém, absorta em uma lembrança de cinco meses atrás quando, profundamente abatida pelo divórcio dos seus pais e pelo término do seu namoro, tentou o suicídio ao cortar seus pulsos com uma gilete anteriormente utilizada em sua depilação.


Em consequência de tal ato estimulado pela melancolia e pelo desespero, a moça encontrou o psicopompo, Sr. T, que, embora tivesse o dever de conduzi-la para o Outro Lado, optou por dar-lhe outra chance de viver, decepcionada e espantada, Perséfone perguntou-lhe qual a razão de tamanho acesso de misericórdia.


— Porque você ainda perceberá que a vida é bela — respondeu. —, e ninguém merece morrer antes disso — falou. —, essa é a sua promessa para mim, carpe diem.


E com um sopro, o Sr. T devolveu-lhe ao seu corpo, a peça fundamental de sua vida, ao despertar em um leito do hospital, Perséfone chorou e sorriu e sussurrou um agradecimento, “Muito obrigada”.



Quem sou eu? Apenas uma amiga. Às vezes. Talvez. Desculpe se eu não pude ajudar. Te vejo por aí...
—Morte (dos Eternos) em Sandman #20: Fachada.

1 comentários:

matheus m. disse...

Realmente, muito bom!

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